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Fortaleza, Ceará, Brazil
Professor Doutor da Universidade Federal do Ceará. Radialista e compositor. Busco entender um pouco dos mistérios da existência. Nessa busca venho encontrando ciência, arte, amigos, novos caminhos, novas possibilidades.

Wednesday, February 22, 2023

Musicultura - reflexões e ressonâncias musicais (Equipe responsável: Pedro Rogério, Marco Fukuda e Marcos Almeida)

 Olá amigos estamos voltando a utilizar esse blog com o intuito de postar os programas radiofônicos Musicultura da Rádio Universitária FM 
Vamos começar com reflexões em torno de um Projeto de Lei - PL que trata de músicas que expressam violência contra a mulher. 

Para quem quiser ouvir novamente, aqui um link para o programa na íntegra 

Musicultura 22/02/2023 - A mulher na música

Trouxemos reflexões das seguintes convidadas

Idilva Germano - Professora do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará

Lu Basile - Professora do Curso de Música da Universidade Estadual do Ceará

Juliana Linhares - Professora do Curso de Música da Universidade Federal do Ceará

Catherine Furtado - Professora do Curso de Música da Universidade Federal do Ceará





Monday, August 24, 2009

Dissertação Pessoal do Ceará 1ª parte

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA

PEDRO ROGÉRIO

PESSOAL DO CEARÁ: HABITUS E CAMPO MUSICAL NA DÉCADA DE 1970

FORTALEZA
2006

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação.

Aprovada em 19 /dezembro / 2006

BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
Prof. Luiz Botelho Albuquerque – PhD (Orientador)
Universidade Federal do Ceará – UFC
______________________________________________
Profª. Drª. Elba Braga Ramalho
Universidade Estadual do Ceará – UECE
______________________________________________
Prof. Dr. José Arimatéa Barros Bezerra
Universidade Federal do Ceará – UFC

À Senhora Natureza Humana

Agradecimentos

Augusto Pontes, Belchior, Cládio Pereira, Dedé Evangelistas, Ednardo, Fagner, Fausto Nilo, Francis Vale, Ricardo Bezerra, Tânia Cabral
"falando da vida"

Téti
“é ouro em pó que reluz”

Rodger
“que se brinque na areia da praia”

Luiz Botelho
“meus olhos de olhar, de olhar querem ver o que há”

Pádua e Márcia Campos
“meus sonhos descendo ladeiras, varando cancelas, abrindo porteiras”

Tiago Araripe e Ana Ruth
“só sorrisos me respondem”

Ticiana Melo e Henrique Beltrão
“são os olhos do mar”

Elvis Matos e Edite Colares
“canções radioativas”

Carlos Velazquez, Liduíno Pitombeira e Márcio Land
“viva o som, velocidade”

Josely Teixeira, Mary Pimentel e Wagner Castro
“caminho certo, sem perigo”

Paulo Mamede
"primeiro uma atitude, segundo algo que mude, terceiro ação de mudar"

Cristiane Holanda
“a lua cheia que eu esperei”


O esclarecimento das conexões de um artista e sua obra
também é importante para a compreensão de
nós mesmos como seres humanos.
(Norbert Elias)

RESUMO
A presente dissertação analisa as trajetórias dos membros de um grupo de intelectuais e artistas para compreender a formação do seu gosto musical. Na década de 70, esse grupo ficou conhecido como “Pessoal do Ceará”. O trabalho evidenciou que as opções estéticas foram definidas por idéias transmitidas pela escola, família, indústria cultural e se diversificaram na multirreferencialidade da educação dos integrantes. A investigação empregou os conceitos de habitus, capital e campo social para identificar as coincidências na formação dos sujeitos, suas convergências para espaços comuns, a partilha de projetos, idéias e a formação de parcerias. Este trabalho estudou a origem familiar dos sujeitos, seus processos de formação escolar e extra-escolar, suas reuniões nos ambientes da Universidade Federal do Ceará, suas ações nos festivais e programas de televisão e concluiu com os primeiros registros fonográficos nas grandes gravadoras do Rio de Janeiro e São Paulo; verificou a formação de um habitus musical forjado na diversidade e constituidor de um sub-campo musical conhecido como “Pessoal do Ceará”.

Palavras-chave: Música do Ceará nos anos 60 e 70; Habitus; Campo Artístico; Pessoal do Ceará.

ABSTRACT
The dissertation analyzed the paths of the members of a group of intellectuals and artists (known in the decade of 70 as "Pessoal do Ceará") to understand the formation of his musical taste. The work studied the family origin of the subjects, their processes of school and extra-school formation, their meetings in the atmospheres of the Federal University of Ceará, their actions in the festivals and television programs, and their first musical registrations at the big recording companies of Rio de Janeiro and São Paulo. The investigation used the concepts of habitus, capital and social field to identify the coincidences in the formation of the subjects, his convergence for common spaces, the sharing of projects and ideas, and the formation of partnerships. Concluded verifying the formation of a musical habitus, wrought out in the diversity of living experiences, and creator of the musical sub-field known as "Pessoal do Ceará".

Í N D I C E
CAPÍTULO 1 - TRAJETÓRIA DO PESQUISADOR
1.1 Da sala de aula à pesquisa
1.2 Professor e aluno: uma tensão a ser reconhecida
1.3 A escolha dos sujeitos da pesquisa

CAPÍTULO 2 - FORMAÇÃO DO HABITUS
2.1 Origem familiar e social
2.2 Formação acadêmica
2.3 Iniciação musical

CAPÍTULO 3 - IDENTIFICAÇÕES E DISTINÇÕES
3.1 Conservatório de música alberto nepomuceno
3.2 Música popular de Fortaleza
3.3 Música brasileira popular e rádio

CAPÍTULO 4 - CONSOLIDAÇÃO DE UM SUB-CAMPO MUSICAL
4.1 Agremiações: cpc, cactus e gruta
4.2 Referências à bossa-nova, tropicália, clube da esquina, beatles e rolling stones
4.3 Pontos de encontro: arquitetura, institutos básicos, ceu, casas e bares

CAPÍTULO 5 - CONSAGRAÇÕES
5.1 Festivais
5.2 Televisão
5.3 Discos e diáspora

CAPÍTULO 6 - CONCLUSÃO: CHEGAMOS A UM HABITUS MUSICAL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Wednesday, February 07, 2007

PESSOAL DO CEARÁ: HABITUS E CAMPO MUSICAL NA DÉCADA DE 1970

CAPÍTULO 1
TRAJETÓRIA DO PESQUISADOR

Arte e ciência são encontros e
reencontros com a realidade.
(Elvis de Azevedo Matos)
1.1 Da sala de aula à pesquisa

Apresentamos inicialmente nossa trajetória da sala de aula à pesquisa no mestrado: as primeiras perguntas que impulsionaram o interesse em aprofundar questões fundamentais para um professor de música, a relação com os alunos; a influência da indústria cultural – um dos eixos de análise da pesquisa; e a escolha do objeto de estudo.
A licenciatura em música pela Universidade Estadual do Ceará (UECE) levou-nos para o ensino formal em 1994. Os 11 anos de sala de aula fizeram nascer muitas indagações que se transformaram em inquietações e pediram respostas mais consistentes. Entre as muitas perguntas que surgiram a partir da experiência no chão da sala de aula, esta em toda sua complexidade, uma chamou mais atenção do que as outras; tratava-se do processo de escolhas das músicas que viriam a ser objeto de estudo nas aulas de música.
Quase sempre se encontrava – e se encontra – uma tensão entre o gosto musical do professor e dos alunos. O professor de música pela sua formação tem uma diversidade de referências musicais que foram vivenciadas no curso superior, na participação junto a grupos eruditos e populares, na pesquisa e nos estudos inerentes à formação da licenciatura em música. Por outro lado os alunos trazem, em sua esmagadora maioria, os referenciais quase exclusivamente vindos das rádios e das emissoras de televisão e suas referências estéticas encontram grande reforço no âmbito familiar que referendam e até mesmo estimulam o interesse pelo repertório comercial.
Cabe relatar uma experiência que ilustra bem o fato: em uma aula de música, na busca de diversificar as opções do repertório, propusemos a música “Bola de meia, bola de gude” da autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant. Para diminuir um eventual estranhamento, introduzimos “elementos da moda”. O baterista se encarregou do rock and roll e algumas partes da letra deveriam ser interpretadas no estilo rap, ou seja, mais declamada do que cantada. Porém, o vocalista relatou não perceber nenhuma identificação com a música, de forma que não se sentia disposto a interpretá-la, afirmando até mesmo que caso cantasse, faria algo que iria contra sua natureza, já que o cantar é um ato extremamente pessoal. Mesmo diante de tal reação ainda tentamos, sem sucesso, convencê-lo com alguns argumentos acerca das idéias poéticas contidas na letra e das possibilidades de experimentações musicais. Algumas semanas depois estreou a novela “Coração de Estudante” na Rede Globo de Televisão e um dos hits do programa era justamente a música que nós insistíramos para ser inserida no repertório do grupo. Eis que o mesmo vocalista voltou atrás no seu julgamento a respeito da música e disse ter se convencido que a mesma era realmente muito interessante. Por fim, após o aval da televisão junto ao aluno, a música passou a figurar no repertório do grupo.
Observação importante é que existe uma ditadura cultural travestida em símbolo de contemporaneidade que massifica o gosto, e quem não se enquadra nos padrões ditados se vê excluído. A cultura de massas é apresentada como única opção para a maior parte dos estudantes. Nas palavras de Theodor Adorno (1996, p. 391):

“Ergue-se uma redoma de cristal que, por se desconhecer, julga-se liberdade.”

Logo surgiram as primeiras perguntas: como diversificar o gosto musical dos alunos? Como encontrar uma saída frente à onipresença das rádios e televisões? Como investigar esse fenômeno?
Hoje é possível analisar com mais clareza a relação do professor com seus alunos. De um lado o estudante de música ouve as músicas que todos ouvem e ao tocar tem o reconhecimento imediato do seu público, ainda que se restrinja aos familiares e amigos mais íntimos. Por outro lado existe um professor que traz novidades que não estão na media e quando o estudante aprende e executa as peças junto ao mesmo público não encontra a reverberação esperada.

1.2 Professor e aluno: uma tensão a ser reconhecida

O professor, de acordo com Adorno (1995), já traz uma significação cultural da sua profissão extremamente carregada. O inconsciente do aluno o representa como um carrasco que tem como função tolher seus prazeres, um carcereiro que impede sua liberdade, que o prende em uma sala de aula.

[...] a opinião pública não leva a sério o poder dos professores, por ser um poder sobre sujeitos civis não totalmente plenos, as crianças. O poder do professor é execrado porque só parodia o poder verdadeiro, que é admirado. Expressões como “tirano de escola” lembram que o tipo de professor que querem marcar é tão irracionalmente despótico como só poderia sê-lo a caricatura do despotismo, na medida em que não conseguem exercer mais poder do que reter por uma tarde as suas vítimas, algumas pobres crianças quaisquer. (Ibidem, p. 103-14).

Com essa visão percebe-se o quanto o professor fica em desvantagem frente às mídias que encantam os alunos com promessas ilusórias de saúde, corpo perfeito, carro novo, roupa nova, cada um sendo admirado em sua plenitude. Uma das atitudes do docente é driblar o imaginário de alguém que nem mesmo tem plena consciência de como se formam suas atitudes, seus gostos, suas crenças, seus valores. É o que Bourdieu (2001 apud BONNEWITZ, 2003, p. 78) denomina de habitus:

O habitus é simultaneamente a grade de leitura pela qual percebemos e julgamos a realidade e o produtor de nossas práticas; estes dois aspectos são indissociáveis. O habitus está na base daquilo que, no sentido corrente, define a personalidade de um indivíduo. Nós mesmos temos a impressão de termos nascido com essas disposições, com esse tipo de sensibilidade, com essa maneira de agir e reagir, com essas “maneiras” e com esse estilo.

Explicitar o que está oculto na formação do aluno, trazer-lhe à consciência a sua própria formação é uma das tarefas do professor, e esse é um trabalho no mínimo impressionante. Não podemos imaginá-lo como impossível, o que condenaria qualquer esforço de pesquisa e movimento em busca de avanços no âmbito da formação humana, mas também não se pode deixar de registrar o quanto é uma tarefa complexa e que, portanto, exige uma mobilização que extrapola o raio de ação do professor na sala de aula. Adorno (1996, p. 388) nos chama atenção para a importância dessa tarefa:
O que hoje se manifesta como crise da formação cultural não é um simples objeto da pedagogia, que teria que se ocupar diretamente desse fato, mas também não pode se restringir a uma sociologia que apenas justaponha conhecimentos a respeito da formação [...]. Reformas pedagógicas isoladas, embora indispensáveis, não trazem contribuições substanciais. Poderiam até, em certas ocasiões, reforçar a crise, porque abrandam as necessárias exigências a serem feitas aos que devem ser educados e porque revelam uma inocente despreocupação diante do poder que a realidade extrapedagógica exerce sobre eles.

Embora extrapole o raio de ação do professor em sala, a formação humana e sua complexidade frente à sociedade pós-industrial não é uma realidade extrapedagógica; esse conjunto de mecanismos que estão influenciando de forma cada vez mais eficaz a educação no sentido lato sensu é que é pedagógico. A sociedade transformou-se em um todo pedagógico, portanto a problemática da educação ganha tal dimensão que não é mais tarefa do professor resolvê-la sozinho, é uma questão coletiva, multidisciplinar, multicultural. O que não significa que o profissional da educação não tenha responsabilidade com o que acontece, antes, deve se apropriar da complexidade da questão, ampliar sua visão e identificar na sua ação parcial como pode intervir no movimento global. Para isso, o professor tem que necessariamente atualizar a própria definição do que é ser professor, sua representação social e como transformar os aspectos que distanciam sua ação do campo de interesses dos alunos. Ele deve empreender essa busca transformando-se e influenciando o seu meio, sendo influenciado e transformando, não somente como uma via de mão dupla, mas em vias que se orientam em diversos sentidos e se adequando à realidade multirreferenciada que é o campo educacional.
Com as tensões criadas em sala de aula no que se refere ao repertório musical, uma questão se impunha: como os gostos musicais dos alunos e professores são formados? Essa pergunta, quase que inevitavelmente nos conduz, se quisermos ampliar a visão sobre a realidade, a empreender um aprofundamento científico. As buscas dessas respostas encontram na academia um espaço adequado e propício a uma reflexão que, se não esgota a questão – e certamente não esgotará – aprofunda e amplia a compreensão da dinâmica social em que o professor está inserido.
1.3 A escolha dos sujeitos da pesquisa

A questão já estava posta: como se forma o gosto musical de um estudante de música? Existem muitas formas de se buscar respostas para a questão em pauta, mas como se sabe, para maior eficiência torna-se importante uma focalização ou um recorte do tema. É razoável pensar que não é possível, pelo menos em um mestrado, que é até onde vai o poder de análise no momento, ter como sujeitos todo o universo de alunos que estudam ou estudaram música. Foi necessário eleger critérios para a escolha dos sujeitos que vieram constituir o foco de atenção da pesquisa. Nesse sentido, era possível optar pela análise da hodierna dinâmica ou optar por uma análise de fenômenos que estavam em um passado que permitisse certo distanciamento no tempo e essa foi a nossa escolha.
Neste ponto coloca-se mais uma questão: que momento do passado se escolheria? Embora teoricamente qualquer momento do passado pudesse ser escolhido como objeto dos interesses da pesquisa, os anos 70 apresentavam características mais instigantes para a mesma. O Brasil vivia um ambiente de especial efervescência política e cultural; encontrava-se sob a égide do poder militar aumentando as tensões políticas. Todo o país era afetado pela conjuntura do momento, todos os setores, e o campo artístico, ainda que com relativa autonomia, não ficou imune e se expressou através das obras de arte. Surgiram movimentos e grupos que ganhavam certa unidade e conquistavam um público e um espaço social. Esses grupos faziam ressoar em suas obras a contracultura que vinha desde a década anterior com os movimentos estudantis na Europa e Estados Unidos, o movimento feminista, a luta contra o racismo, os protestos contra a guerra do Vietnã e a bandeira da liberdade hasteada em Woodstock.
Tomaz Tadeu da Silva (2003, p. 29) assim nos informa:
Como sabemos, a década de 60 foi uma década de grandes agitações e transformações. Os movimentos de independência das antigas colônias européias; os protestos estudantis na França e em vários outros países; a continuação do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos; os protestos contra a guerra do Vietnã; os movimentos de contracultura; o movimento feminista; a liberação sexual; as lutas contra a ditadura militar no Brasil: são apenas alguns dos importantes movimentos sociais e culturais que caracterizam os anos 60.

No Brasil podemos visualizar um pequeno painel com pelo menos quatro momentos de relevância na área musical. Primeiro a bossa-nova, movimento que renovou a estética musical se apropriando das novas tecnologias em equipamentos de sonorização e com isso substituindo as grandes vozes de fôlegos e potências impressionantes por um cantar econômico que explorava nuances e sutilezas da voz, o que também deixava o cantor mais livre para brincar com o ritmo melódico. A bossa-nova aliou esse cantar “pequeno” a harmonias complexas que tinham como fonte a música erudita européia e o jazz americano, esse último, mesmo tendo influenciado a bossa-nova, também sofreu influência dela. Mas com o advento do golpe militar e a situação social se agravando, os bossanovistas foram acusados de alienados. Tal crítica encontrou representantes entre seus próprios compositores e intérpretes, como Carlos Lyra e Nara Leão que passaram a incorporar o discurso dos sambistas do morro.
O segundo momento foi o Clube da Esquina, em Minas Gerais, que trazia dentre suas características um sentimento latino-americano de irmandade, um sentimento fraternal ligado pelas dificuldades dos países da América do Sul e suas riquezas musicais. O terceiro momento aconteceu na Bahia: a Tropicália aliando a cultura tradicional às guitarras do rock e a elementos do teatro formando uma miscelânea de linguagens que foi bem expressada na música de Gilberto Gil e Torquato Neto: Geléia Geral.
Por fim, para ilustrar a efervescência cultural brasileira, encontrava-se no Ceará um grupo de artistas e intelectuais que pensavam, criavam, recriavam todas as questões que inquietavam o país. Esse grupo ficou conhecido como Pessoal do Ceará. Entre seus integrantes existiam filósofos, físicos, químicos, arquitetos, músicos, poetas, cantores, atores, enfim: um grupo de formação eclética, mas com alguns traços formativos comuns.
A pergunta feita inicialmente a respeito da formação dos gostos musicais de estudantes em sala de aula, volta agora, porém olhando para esse grupo: como esses artistas e intelectuais formaram seus gostos artísticos? Como foi a formação estética desses que seriam mais tarde identificados como Pessoal do Ceará? Certamente os elementos artísticos por eles utilizados não surgiram espontaneamente, são elementos simbólicos que ganharam novas significações em um contexto socialmente demarcado. Portanto, a escolha desse grupo faz sentido para um pesquisador que é também professor de música no Estado do Ceará. Por um lado, as fontes estão mais acessíveis, pois a maioria mora em Fortaleza e os que não moram mantém contato e relações familiares e de trabalho na cidade e, por outro lado, o Pessoal do Ceará teve seu ápice na década de 70, o que proporciona, em parte, um olhar distanciado e que é de certa forma, oportuno à análise científica.
Pesquisando em discos, artigos de jornais e revistas, percebemos que não existia uma definição fechada sobre quais sujeitos integrariam essa geração de artistas. Em consulta prévia para sondagem da questão da escolha dos sujeitos a serem ouvidos em entrevistas recolhemos os seguintes nomes informados por Rodger:

Petrúcio Salvino Mesquita Maia, Iracema Melo, Olga Paiva, Nonato Freire, Renato Serra, Wilson Cirino, Cláudio Roberto de Abreu Pereira, Francisco Augusto Pontes, Sergio Costa, Mércia Pinto, Ângela e Chica, Antonio José Soares Brandão, Delberg Ponce de Leon, Fausto Nilo Costa Jr., João Braga de Lima, Aderbal Freire Filho (então assinando "Aderbal Jr.") Rodger e Dedé Evangelista, João Ramos, Augusto Borges, Neyde Maia, Gonzaga Vasconcelos, Paulo e Narcélio Lima Verde, Wilson Ibiapina, Mauro Coutinho, Audifax Rios, Polion Lemos, Ednardo Costa Souza, Raimundo Fagner Lopes, Antonio Carlos Belchior, Amélia Colares, Ricardo Bezerra.(12 de fevereiro de 2006).


E Téti abre completamente o leque dos participantes desse grupo nos informando que o

“Pessoal do Ceará não sou eu, Ednardo e Rodger. São todas as pessoas que de uma maneira ou de outra tenham uma relação com a arte, seja ela música, cinema, artes plásticas...”. (13 de fevereiro de 2006).

As informações acima nos revelam um amplo e generoso espírito de coletividade que permeava o comportamento dos informantes. Não obstante, toda essa abertura inviabilizaria a pesquisa que buscou sua principal fundamentação na fala dos sujeitos, utilizando as entrevistas como principal recurso para nossa análise. Dessa forma estava posta a primeira questão metodológica a ser resolvida: como eleger um critério para a escolha dos sujeitos que viabilizasse a pesquisa?
Entre os marcos vividos pelos sujeitos encontramos um disco que pôde ser tomado como critério de seleção deles: Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem. Esse disco foi escolhido porque traz duas referências centrais sobre o grupo em estudo, que serão apontadas a seguir.
Esse foi o primeiro long play (LP) registrado através de uma gravadora de grande porte (Continental) após a decisão dos agentes de migrarem para as grandes metrópoles brasileiras; e o LP acima mencionado tornou-se, então, um marco na aventura de desbravamento de um novo universo de possibilidades artísticas para esses criadores sedentos de serem ouvidos, reconhecidos e aplaudidos. A socióloga Mary Pimentel Aires (2002, p. 22), primeira pesquisadora sobre esses artistas, assim o classifica:

Reunindo canções como Beira-Mar e Terral, de Ednardo, Cavalo Ferro, de Fagner e Ricardo Bezerra, o disco Pessoal do Ceará – Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem, produzido por Walter Silva para a gravadora Continental, em 1972, constituiu-se como marco na incursão dos novos compositores cearenses no mercado fonográfico.

A segunda referência que norteou nossa escolha foi o fato de o disco Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem ter como sub-título o nome Pessoal do Ceará. Estava criada a marca. Quando os meios de comunicação e os jornalistas queriam (e ainda querem) se referir a essa geração de artistas, utilizavam (e ainda utilizam) o sub-título do disco-marco; o que vem confirmar essa obra como marcante nas trajetórias desse grupo, visto que, mesmo sem reunir todos a uma só vez, ainda assim, o disco registrou o nome que passou a identificar o conjunto de cearenses recém-chegados ao mercado fonográfico.
Até hoje jornalistas, pesquisadores, amantes da música cearense, comunidades virtuais e sites associam o nome Pessoal do Ceará a esse grupo de pessoas inseridas no campo intelectual e artístico que produziram músicas, canções, poemas, entre outros, partindo de lugares e referências estéticas comuns a todos eles e que implementaram concomitantemente um projeto de inserção nacional de suas obras.
Os artistas que participam do disco são:
Augusto Pontes, Dedé Evangelista, Ednardo, Fagner, Ricardo Bezerra, Rodger, Tânia Araújo e Téti.
Foram incluídos, também, os nomes de Cláudio Pereira e Francis Vale, por terem sido, ambos, identificados nas entrevistas como agitadores culturais. É importante salientar que os depoimentos mencionam os nomes de Pereira e Vale na qualidade de agentes inseridos na geração de intelectuais, mas que não produziam arte diretamente, fato que os coloca na condição de observadores, constituindo-os em informantes dos sujeitos. Ainda assim, suas trajetórias individuais revelam interseções importantes com os demais sujeitos que reforçam o poder explicativo de alguns aspectos de ordem social e que, por isso mesmo, foram levados em conta. Fausto Nilo chega a declarar que

“[...] o Francis era uma pessoa que estava muito presente, sem ser compositor ainda, nem nada, mas ele acompanhava isso tudo, uma pessoa que tem uma memória tão importante como a nossa [...].” (12 de junho de 2006).

Mais dois nomes foram incluídos pela extensão da produção discográfica e de parcerias com os sujeitos acima além das recorrentes menções nas falas dos entrevistados: Belchior e Fausto Nilo. Logo, a pesquisa chegou a entrevistar doze sujeitos, percorrendo através das falas de cada um, suas trajetórias desde a origem familiar, passando pelos processos de formação escolares e extra-escolares; seus encontros nos ambientes da Universidade Federal do Ceará; suas ações através de festivais e programas de televisão e chegando aos primeiros registros fonográficos até 1974, o que foi satisfatório para a compreensão da principal questão que expomos a seguir.
Como esse grupo de intelectuais e artistas cearenses que compartilharam espaços comuns, constituíram parcerias e que ficaram conhecidos como Pessoal do Ceará definiram seus gostos musicais?
Sem obliterar a multirreferencialidade, escolheremos alguns aspectos que emergiram das entrevistas. Os mesmos não esgotam a realidade por eles vivida, mas responde à pergunta em grande medida.
CAPÍTULO 2
FORMAÇÃO DO HABITUS

Para saber, para fazer, para ser ou para conviver
todos os dias misturamos a vida com a educação [...].
(Carlos Brandão)

2.1 Origem familiar e social

Perceberemos no decorrer do trabalho que as coincidências não se referem a incidências casuais, eventos que surgem ao acaso, o sentido é diametralmente oposto. Visualizaremos porque esses artistas se encontraram; com tantas possibilidades, o que os levaram para lugares comuns, com referências musicais semelhantes e assim identificaremos através de suas trajetórias como foram se definindo seus gostos musicais a ponto de firmarem parcerias e compartilharem projetos.
Analisando as relações sociais das famílias dos sujeitos percebemos que as mesmas são originárias da classe média. A classificação “classe média” não abarca toda a diversidade social inerente às formas de organização da sociedade, visto que, como poderemos observar, os agentes mantém variadas relações com os que se encontram na esfera decisória da sociedade e com as classes com parcos capitais sociais, econômicos, culturais e simbólicos – para ilustrar com as quatro principais categorias utilizadas pelo sociólogo Pierre Bourdieu (2001). Não obstante, feita essa ressalva, para nosso intento utilizaremos essa classificação, mas cuidando para apontar as interseções e as diferenças entre os diversos campos ou sub-campos sociais e mesmo entre os sujeitos que se relacionam dentro de um mesmo campo ou sub-campo.
Augusto Pontes ficou órfão de pai aos 08 anos de idade e sua mãe se dedicava à costura, ou seja, ela desenvolveu a habilidade de identificar o gosto do outro. O mundo da moda sempre esteve relacionado às distinções entre grupos sociais. A geração que se inspirou em Woodstock – para trazer um exemplo que se relaciona com os sujeitos desta pesquisa – lançou uma nova forma de vestir, de falar, de cantar, enfim, um novo conjunto de idéias que é expresso pelo conteúdo do discurso falado e escrito, mas é também, em especial no campo artístico, expresso pelas diversas formas do comportamento humano. Os profissionais ligados à arte produzem uma nova gramática artística relacionando-a com as novas idéias sociais. Essa correspondência cria uma alimentação mútua: os aspectos comportamentais reforçam a ideologia e essa legitima as novas formas de relações sociais, incluindo as opções estéticas. Como fazer uma música cair no gosto do público, seja do grande público, seja de uma roda de amigos? Nesse sentido, a habilidade vinda de dona Vanda Teixeira Pontes, gestora do entrevistado, do métier da costureira que lida com o modismo, se assemelha à do letrista, publicitário, diretor de teatro entre outras atividades ligadas à arte exercidas por Augusto Pontes. A orfandade paterna reforça, consciente ou inconscientemente, sua ligação com a mãe:

“[...] a mamãe tinha esse pendor, ela era uma artista da costura.” (Augusto Pontes, 19 de maio de 2006).

O conceito de originalidade buscado pelos artistas tem muito a ver com as distinções almejadas pelas classes dominantes. Enquanto as classes subordinadas buscam assemelhar-se aos dominadores, esses querem distinguir-se daquela. Esse é um aspecto relevante, pois situa o campo artístico dentro dessa esfera média da sociedade que, nem sempre de forma consciente, se põe a serviço dos gostos que legitimam as diferenciações sociais.
Nos depoimentos, os sujeitos, quando relatam possuir, na sua origem familiar, um baixo poder econômico, ainda assim revelam suas ligações com agentes da fração dominante da sociedade.

Por exemplo, nas falas de Belchior:

“Olha, é muito interessante, comparado com a minha infância, a consciência de que eu fui um menino muito pobre, a minha família é de origem muito pobre. Eu não me lembro de nunca ter recebido dinheiro do meu pai pra nada.” (20 de junho de 2006).

Em outro momento o mesmo declara:

“eu não sei se tinha importância, mas o meu pai foi delegado, vice-delegado, tinha alguma coisa ligada com esse exercício, que eu sempre uni com a idéia dele ter sido Juiz de Paz, lá em Coreaú” (Belchior, 20 de junho de 2006).

As duas falas de Belchior não estão em contradição, conclusão possível para uma observação superficial; antes elas revelam que, se por um lado seu pai não detinha poder econômico, por outro soube amealhar um relevante capital social.
Mantendo a ênfase na importância simbólica da representação pública de seu genitor, Belchior também aponta uma atividade comercial de seu pai:
Meu pai foi bodegueiro [...] sabia ler, escrever, contar e se orgulhava de uma bela caligrafia. Eu confirmo isso porque eu tenho documentos escritos à mão por ele; ele foi, por exemplo, uma espécie de Juiz de Paz na roça. Eu não sei, eu acho que existe essa figura jurídica, um sujeito que é escolhido por uma autoridade jurisdicional, é mais ou menos o representante oficial, prepara os banhos, os casamentos e tem ligação com a coletoria, o fato é que ele teve aí em Coreaú a primeira família que foram dez filhos e com o falecimento da primeira mulher dele ele casou com a Dona Dolores que é minha mãe e aí continuou em Coreaú.. (20 de junho de 2006).


Podemos observar o destaque social, no contexto descrito, de ser dono de uma bela caligrafia que habilitava o pai de Belchior, Otávio Belchior Fernandes, a representar uma figura jurídica local. Ainda que com poucas posses, em uma atividade comercial pouco valorizada, a de bodegueiro, o mesmo é percebido nas lembranças de seu filho como alguém que manteve certa distinção social.
O funcionalismo público que está relacionado à esfera média da sociedade é também identificada na origem familiar de Cláudio Pereira e Dedé Evangelista. O pai de Cláudio, de nome José Pereira, era funcionário do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e o pai de Dedé Evangelista, Severino Moreira de Sousa, era funcionário da Prefeitura de Fortaleza.
A máquina estatal detém um poder que determina em grande medida os destinos da sociedade. Seus funcionários, portanto, estão a serviço de um poder relevante. Lembramos, contudo, que não se trata de uma constatação fatalista, que anula os sujeitos subordinados ao poder, mas aponta um conjunto de habilidades relacionais que se inserem na formação humana. Não há, portanto, uma hegemonia que graça sem nenhuma resistência.
Jaques Therrien e Maria Nobre Damasceno (2000, p. 15) corroboram essa idéia:
Na prática cotidiana a hegemonia nunca realiza apenas a dominação, a imposição. Ela é continuamente recriada, modificada; e é a partir daí que se afirma com todo o vigor o sentido de contra-hegemonia como hegemonia alternativa, que contém elementos reais e persistentes na prática, quer na esfera política quer na cultural, fruto das oposições e lutas travadas no cotidiano dos atores sociais.

Os pais de Ednardo – ambos professores – fundaram o colégio Ginásio Dom Bosco. Eram amigos daquele que viria ser o reitor fundador da Universidade Federal do Ceará, Antônio Martins Filho. Vejamos as palavras de Ednardo:
Meu pai e minha mãe eram professores. O sustento da família vinha de seus salários precários, naquela época professores no Nordeste. Após anos de muito trabalho e luta formaram o colégio Ginásio Dom Bosco [...]. Nesta época Antônio Martins Filho, que posteriormente seria escolhido como Reitor da UFC, administrava a Escola de Comércio Pe. Champagnat, no Colégio dos Irmãos Maristas, e para estar apto a assumir o cargo, teria que repassar a administração e o funcionamento da escola para outro diretor e administrador. Suas declarações na época é que a pessoa que ele confiava como mestre de ensino daquele estabelecimento de ensino era o Prof. Oscar Costa Sousa. (10 de junho de 2006).
Ednardo também fala das condições de vida da família:

Até 1963, não tínhamos casa própria. A família ocupava cômodos, separados por portas, no imóvel alugado para funcionamento do colégio e escola. Durante 25 anos, não tivemos privacidade familiar, os trabalhos de meus pais se misturavam ao cotidiano familiar nos turnos da manhã, tarde e noite, das 7h até 22h.. (10 de junho de 2006).
As declarações do entrevistado deixam clara a posição social de uma família de classe média. Ainda que não fossem detentores de vultosos recursos econômicos, o fato de seus pais serem professores fundadores de uma instituição escolar e de manterem relação de confiança com o futuro reitor da Universidade Federal do Ceará servem como ilustrações claras que apontam ser essa uma família ocupante de um espaço social que detém certa quantidade de capitais sociais, culturais e simbólicos os quais se convertem em vantagens efetivas.
Fagner é filho de um comerciante imigrante do Líbano, José Fares Lopes, que chegou a Orós[9] vendendo vestidos, depois ingressou no campo de comércio com gado. Seu pai, portanto, em sua primeira atividade profissional no Ceará, trabalhou com um comércio que se relaciona com os gostos sociais. Nesse aspecto encontramos uma interseção com a atividade de dona Vanda Teixeira Pontes, mãe de Augusto Pontes.
Percebemos outra coincidência na área comercial: o pai de Fausto Nilo, Luís Costa, era comerciante na cidade de Quixeramobim, dono de uma das duas padarias existentes na cidade no período da sua infância.
Fausto Nilo traz um interessante comentário sobre a posição social da sua família:
Eu sou filho de uma família de classe média de uma cidade do interior, eu nasci num pós-guerra [...] meu pai tinha uma padaria na cidade, nós éramos de classe média, mas de uma certa maneira pertencíamos à elite, coisa que eu só compreendi depois, porque lá nós éramos tratados pelos pobres como se fôssemos os ricos. Mas não era, era o conceito de elite que eu não conhecia bem. Quando eu cheguei em Fortaleza eu senti o peso da classe a que eu pertencia lá, uma ‘classe mediazinha’, mas lá a gente tinha uma situação: morava na rua principal, uma casa antiga que tinha sido do meu avô e meu pai tinha a padaria. Tinham duas padarias, a cidade é linear, na beira do rio, portanto uma cidade comprida assim, lá na ponta do lado de baixo, que a gente chamava, mais próximo da praça da matriz, junto à estação, tinha uma padaria outra e o meu pai tinha a padaria nessa outra parte, na outra extremidade. E pra mim foi uma vida de muita luta do meu pai e da minha mãe que fazia bolos e doces. (12 de junho de 2006).
A aguçada percepção de Fausto é um exemplo de aplicação do método comparativo (BOURDIEU, 2005). Ser da classe média depende do contexto em que se situa a fala; nas ciências humanas e sociais nos filiamos ao pensamento de que nada é absoluto, tudo depende. “Classe” não é um conceito isolado, não se trata de uma categoria universal. Estar perto ou longe no espaço social é tão relativo quanto no espaço geográfico, logo, depende do referencial. Ser proprietário de uma padaria tem significados diferentes em Quixeramobim e em Fortaleza, ou seja, além do volume dos recursos financeiros, a importância e a função da padaria na comunidade também diferem dependendo do espaço social em que está inserida. Isso faz parte desse trabalho, comparar as trajetórias individuais levando em conta os significados dos traços relevantes na constituição das percepções que colaboram nas tomadas de decisões estéticas, ou seja, de filiação a determinados gostos que passam a permear a obra.
Para melhor fundamentação do pensamento aqui exposto, é de bom alvitre trazer as próprias palavras de Bourdieu (op. cit., p. 31): “Se é verdade que o real é relacional, pode acontecer que eu nada saiba de uma instituição acerca da qual eu julgo saber tudo, porque ela nada é fora das suas relações com o todo.”
A declaração de Fausto nos traz a excelente oportunidade de pensar relacionalmente. O volume de capitais da sua família dentro da realidade de sua cidade natal, Quixeramobim, não deixa de ter a distinção, por ele observada, de uma classe média próxima à elite; a ressalva feita é que a percepção dos valores vale para dentro daquele contexto, retirando um objeto, ou um sujeito com toda a sua carga de valores e inserindo-o em outro contexto, sua posição pode mudar completamente e, aquilo que antes valia não vale mais, ou aquilo que nada valia passa a valer muito. Em Quixeramobim, na época por ele descrita, a família de Fausto Nilo continuou sendo de uma classe média próxima à elite da cidade e quando ele chegou a Fortaleza trazendo consigo a forma de percepção constituída em outro contexto recebeu aquele choque social quando os valores foram praticamente todos modificados a uma só vez.
O pai de Ricardo Bezerra, José Moacir Bezerra, queria ter seguido carreira militar, que era uma das opções feitas para conseguir ascensão social, mas seu pai, avô de Ricardo Bezerra, exigiu que o filho assumisse o comércio que mantinha na cidade quando o mesmo estava no Rio de Janeiro estudando para entrar nas Agulhas Negras. O comércio tratava-se da Farmácia Pasteur.
Nas palavras de Ricardo Bezerra, falando sobre a trajetória de seu pai:
Terminou o colegial, o científico no Colégio Militar e aí ele foi pro Rio pra seguir a carreira militar e então teve essa carreira abortada pelo desejo do pai e o pai o trouxe de volta pra ir ser sócio lá da Farmácia Pasteur na Praça do Ferreira. (6 de junho de 2006).
O que nos interessa agora é notar que a carreira militar e a de comerciante, ainda que mantendo certa autonomia social, também se inserem nas faixas médias das posições sociais. O mesmo acontece com os professores, os intelectuais, os artistas e com os comunicadores.
A trajetória de José Cabral Araújo, pai de Tânia Cabral, exemplifica o pensamento acima exposto: dedicou-se ao rádio, foi um dos pioneiros da radiofonia cearense, mas se sentiu obrigado a optar pela atividade comercial. Foi funcionário da “Esso”, trabalhou com venda de pneus, mas não se desligou do mundo radiofônico; também ingressou na Marinha, que foi um dos investimentos da família para que o mesmo seguisse carreira militar, e deu aulas de matemática.
As famílias procuravam dar educação pros filhos, nessas cidades pequenas nós não tínhamos isso [...] os rapazes às vezes mandavam pro exército, meu pai fez colégio militar. [...] conforme as posses da família, às vezes ia pra uma coisa assim ou então mandavam até pro seminário [...]. Meu pai foi um dos pioneiros do rádio [...]. Quando ele casou, eu acho que pouco tempo depois que ele casou, eu acho ele até saiu da rádio. [...] tinha essa estória da rádio e eu acho até que podia ter sido a pressão, justamente quando os filhos começaram a nascer, ele era vendedor e depois ele chegou a ser gerente [...]. Depois foi gerenciar numa área [...] eu não sei direito o cargo [...] ficou muito tempo e chegou a ser aqui gerente da “Esso” [...] o pai tinha sido afastado, expulso mesmo da Marinha, na época da revolução comunista. [...] a Escola Naval pra você ser oficial, aquela coisa toda, a família tinha investido muito nisso, e ele lá se mete nessa coisa de comunista. [...] aí voltou pra Fortaleza e começou dar aula de matemática, aquelas coisas pra tentar sobreviver [...]. Mas sempre com muita ligação, que naquele tempo não tinha essa coisa, não existia televisão, então o rádio era uma coisa muito poderosa, as pessoas se ligavam muito naquela que tinha sido a atividade pública dele. Ele também escrevia pra jornal [...]. (18 de julho de 2006).
O pai da Tânia transitou por várias atividades típicas da classe média: professor, militar, vendedor, gerente e comunicador no rádio e no jornal. Esse ecletismo foi uma estratégia empregada através de investimentos nas relações sociais amealhando capitais culturais, simbólicos e sociais.
O pai de Téti casou duas vezes; do primeiro casamento gerou quatorze filhos e do segundo dez filhos, dos quais Téti é a caçula. Ficou órfã do pai, Juvêncio Alves de Oliveira, aos dezesseis anos de idade. Em Quixadá[11], o mesmo era proprietário da Fábrica Redes São Luís, foi escrivão da Coletoria das Rendas Federais, instalou o Cine-Teatro Brasil, instalou a tipografia, livraria e papelaria quixadaense, foi presidente da Câmara Municipal e da Associação Comercial de Quixadá. Sua mãe, Maria Morais de Oliveira, foi diretora da Escola Jesus Maria José que fundou com o vigário de Quixadá – terra natal de Téti – Lucas Hensen e em Fortaleza foi professora do curso ginasial no Instituto São Luís. O irmão mais velho de Téti, Juvêncio Alves de Oliveira Filho, era professor de inglês, chegou a lecionar no Departamento de Letras Estrangeiras da Universidade Federal do Ceará. As principais referências profissionais, para a futura intérprete da música cearense, eram dessas atividades ligadas aos serviços que nós estamos demonstrando estar associadas à classe média em nossa sociedade: comércio e ensino.
Rodger ficou órfão de pai aos nove anos de idade. Seu, pai, Pedro Rogério Aguiar era aviador e sua mãe, Maria José Franco Aguiar, era professora de história e geografia na rede estadual de ensino, mas antes de se formar trabalhava com costura. Mais uma incidência comum na área do magistério e da costura. No caso de Rodger, que era filho único, a orfandade paterna reforça ainda mais a referência materna de professora e costureira.
Colocando em evidência a questão da orfandade paterna apontamos que o mesmo ocorreu com Augusto Pontes, Téti e Rodger. Pontes em relação ao ofício de costureira de sua mãe; Téti no que se refere à sua mãe que se dedicou ao magistério e por ser ela a caçula de uma família de dez irmãos, a referência de seu irmão mais velho, professor de inglês chegando ao magistério em nível superior também apresenta relevância, e Rodger em relação aos ofícios de costureira e professora de sua mãe. Esses são aspectos familiares que reforçam a idéia de um conjunto de disposições que são incorporadas e trazem uma gramática relacional constituída nessas atividades desenvolvidas nas faixas medianas da sociedade.
Confirmamos dessa forma que esse é um grupo de pessoas que tem sua origem nas classes médias; escrevo, agora, no plural justamente por constatar a diversidade advinda do que classificamos por classe média.
Sérgio Miceli (2001, p. 245) ilumina nossa reflexão.
Enquanto prevalecer a tendência de enxergar as relações de classe como o confronto entre entidades coletivas movidas por um destino inescapável, cuida-se pouco da heterogeneidade produzida por padrões de diferenciação sutilmente inculcados pelo sistema escolar, pela indústria cultural e pelas demais instituições que se incubem do trabalho cotidiano de veicular as linguagens que expressam as diferenças sociais sob a capa de diferenças, biológicas, escolares, culturais etc.
Vejamos o esquema:
1 – Professores: pai e mãe de Ednardo, mãe de Rodger, pai de Tânia Cabral, irmão mais velho e mãe de Téti;
2 – Funcionários públicos ou ocupantes de cargos públicos: pai de Belchior, Cláudio Pereira e Dedé Evangelista, mãe de Rodger e irmão mais velho e pai de Téti;
3 – Comerciantes ou prestadores de serviços: mãe de Augusto Pontes e Rodger, pai de Belchior, Fagner, Fausto, Ricardo Bezerra, Tânia Cabral e Téti;
4 – Tentaram carreira militar: o pai de Ricardo Bezerra e Tânia Cabral.
Podemos notar que a carreira militar ficou como tentativa, não passando de investimento frustrado. Com os filhos, sujeitos dessa pesquisa, a carreira militar também se apresenta como opção, mas não chega a se converter em investimento direto. As referências familiares constituem parte importante da formação humana. As profissões desenvolvidas pelos pais, irmãos mais velhos ou parentes próximos tornam-se referências de comportamento e das funções que se espera que sejam desenvolvidas pelos indivíduos. Essa formação também é fortemente reforçada pela escola. Essas duas instituições – família e educação formal – constituem os habitus primário e secundário, respectivamente.
Nas palavras de Patrice Bonnewitz (2003, p. 78-79):
Entre todas as ações pedagógicas que sofremos, as mais decisivas são as mais precoces, as que sofremos durante a infância, e que tiveram como resultado inculcar-nos um “habitus primário”. Este é constituído das disposições mais antigamente adquiridas e, logo, mais duradouras. O grupo familiar desempenha um papel preponderante nessa socialização primária.
O contato com o ambiente escolar, que tem como característica uma longa duração e a manutenção do contato direto entre os indivíduos, constitui o habitus secundário.
Embora se tratem de habitus primário e habitus secundário, não significa que se considerem essas estruturas como estruturas separadas, ocorrendo uma após a outra. O fenômeno da formação humana é multirreferencial: família, escola, convivência nas ruas e nos espaços públicos, em geral são unidades que se entrelaçam na existência social. Norbert Elias (1994, p. 26-27) já chamou a atenção para essas relações: “[...] todo indivíduo constitui-se de tal maneira, por natureza, que precisa de outras pessoas que existiam antes dele para poder crescer. Uma das condições fundamentais da existência humana é a presença simultânea de diversas pessoas inter-relacionadas.”
São inseridas nessa teia de relações humanas que estamos compreendendo as trajetórias dos sujeitos dessa pesquisa. Portanto nesse tópico percebemos que elas têm uma origem em comum: a classe média, ou ainda, faixas médias da sociedade, já que podemos observar que existe uma grande diversidade dentro da chamada “classe média”.
Essas posições intermediárias, que se relacionam com as elites, os credenciam para internalizar uma gramática comportamental que permite essa relação com os agentes das classes dominantes; e ainda mais, os habilitam a desenvolver novas formas comportamentais que legitimam as opções estéticas diferenciando e criando certa distância social entre grupos de status diferentes.
Existe ainda uma interseção mais marcante entre a família e a formação acadêmica, trata-se da alfabetização que para alguns aconteceu dentro da própria casa ou por parentes que lecionavam em escolas.
Assim foi com Dedé:
[...] fui alfabetizado pelas minhas irmãs. Elas eram professoras primárias. A Dagmar principalmente era professora [...] ela ensinava numa escolinha muito próxima e aí eu freqüentava a escolinha dela, onde ela ensinava. Foi ela quem me alfabetizou. Aí depois eu fui pro Colégio Cearense, já tava no terceiro ou quarto ano primário, já tava alfabetizado, aí fiquei até o científico, toda a parte de colégio eu fiz lá. (2 de junho de 2006).
Fagner fala sobre sua alfabetização:
Foi aqui em Fortaleza. [...] alfabetização, minhas irmãs sempre me ensinando, Elizete principalmente que ela era professora [...] e eu gostava! Eu levava criança pra ensinar dentro de casa, lá em casa, trazia crianças pobres dos bairros pra alfabetizar em casa. Fiz muito isso. E freqüentei esses coleginhos [...] até o admissão [...] dali da Piedade[12], da Treze de Maio[13].Eu vim desses coleginhos internos [...]. (19 de junho de 2006).
Fausto Nilo iniciou sua alfabetização dentro da casa das professoras e não dentro de uma escola. Sobre sua alfabetização ele informou o seguinte: “Foi em casa com professoras, na casa delas, até o meu terceiro ano primário, as cartilhas [...] Fui pro grupo escolar depois. Eu tive três professoras em casa, na casa delas, aí depois fui pro grupo escolar. [...] só vim pro Ginásio em Fortaleza com 11 anos.” (12 de junho de 2006).
A alfabetização de Ricardo Bezerra também foi em casa: “[...] fui alfabetizado em casa, foi uma época que minha mãe desconfiava da educação primária e botou uma professora pra me alfabetizar em casa, uma ex-freira.” (6 de junho de 2006).
Rodger também foi alfabetizado em um ambiente familiar, na Escola da Dona Goesinha. Essa escola funcionava dentro da casa da senhora Goesinha que era irmã da avó do artista cearense. Nas palavras de Rogério: “Fui alfabetizado pela Vó Goesinha, minha tia-avó. A Mãe Yaya, minha avó, mantinha uma turma, uma classe em casa.” (6 de novembro de 2006).
Constatamos que mais de um terço dos entrevistados foram iniciados nas letras ainda dentro de casa. Esses são detalhes que parecem irrelevantes à primeira vista, mas se lembrarmos que as estruturas constitutivas do habitus são especialmente fortes na infância fica fácil perceber que se inserem em parte importante da formação humana.
Nesse sentido, nos filiamos ao pensamento de Elias (1994, p. 30):
Que as pessoas – ao contrário das bolas de bilhar – evoluem e mudam nas suas relações mútuas e através delas é um fato que pode não ficar muito claro enquanto pensarmos exclusivamente nos adultos, cujo caráter e cujas estruturas de consciência e instinto se tornam mais ou menos fixos.
Portanto, esse é um aspecto formativo que reforça ainda mais a influência da estrutura familiar sobre os sujeitos apontados.
2.2 Formação acadêmica
Os investimentos familiares no sentido da ascensão social vindo da formação de seus pais refletem na educação que esses desprendem para os sujeitos em questão nesse trabalho. As estratégias para iniciar uma educação de qualidade são a carreira militar, o seminário ou a vinda para Fortaleza para dar continuidade ao estudo formal.
Augusto Pontes fala um pouco das suas lembranças no seminário:
[...] tinha o padre Gumercindo que era professor [...] toda minha formação tem muito desse negócio da seriedade, do compromisso, uma coisa antiga que hoje eu fico tonto porque ninguém é assim. Eu faço isso com facilidade, cumpro o dever com facilidade, desenvolvi uma tolerância com os outros. Aí eu fui mudando de amizade, mudando de geração, meus amigos são muito mais novos do que eu. O seminário foi isso, marcou pela disciplina. (19 de maio de 2006).
Grande parte da história da música ocidental tem seu desenvolvimento ligado às igrejas. Uma das formas de composição chama-se “missa”, que como o nome já revela está relacionada à liturgia religiosa. Muitos compositores que influenciaram fortemente a música ocidental compuseram para suas igrejas. Podemos trazer alguns exemplos ilustrativos como a Missa em Si Menor (1738) de Bach[14], a Missa Solemnis (1823) de Beethoven[15], Haydn[16] compôs seis importantes missas entre elas a Missa Nelson (1798) e a Missa in Tempore Belli (1796). Entre as missas do final do século XIX podemos destacar as de Bruckner[17], Liszt[18] e Gounod[19] e do século XX missas escritas por Vaughan Williams[20], Poulenc[21] e Stravinsky[22] (ISAAC; MARTIN, 1985).
A ligação da música com as igrejas é um tema já bastante estudado e poderíamos expor muito mais exemplos. Contudo nos interessa aqui não mais que ilustrar a força de instituições sociais sobre nossa sociedade, que no nosso caso veremos na educação dos sujeitos dessa pesquisa no que se refere ao ensino nos seminários ou à possibilidade de nessas instituições estudarem.
Belchior sentiu profundamente essa relação com a música religiosa. Vejamos sua declaração: “eu era estudante dos frades capuchinhos onde eu estudei música, coral, onde eu vi diversas músicas religiosas, hinos, essas coisas assim e quando eu saí pra fazer o vestibular de medicina eu já comecei a fazer música [...].” (20 de junho de 2006).
O período estudantil vivido por essa geração era de muita turbulência, de muitas transformações; para os que vêm de uma educação com tradição escolástica mais acentuada esse choque é bem maior.
[...] quando eu entrei pro Liceu foi um choque, histórico, absurdo, porque eu estava vindo de um colégio absolutamente disciplinar, como era um colégio de padres e o Liceu era um ambiente extremamente juvenil, do ponto de vista das propostas políticas e tava todo mundo fazendo greve, quebrando ônibus, incendiando ônibus e eu não tinha muita compreensão, ainda, devido à escola de onde eu vinha, eu não tinha compreensão de como é que tava se dando aquelas coisas [...]. (Belchior, 20 de junho de 2006).
No caso de Belchior esse choque deve ter sido ainda maior, pois sua formação religiosa foi mais extensa que a dos demais. Sua lembrança afetiva também se revela, por isso mesmo, com mais intensidade:
Eu mesmo entrei no colégio dos padres[23], que era pago, fazendo um concurso de uma bolsa. Eu ganhei uma bolsa de estudos, fiz um concurso e ainda hoje eu tenho em casa, nos meus documentos uma cópia da dissertação com que eu participei dessa banca e ganhei essa bolsa de estudos. Estudei quatro anos no colégio dos padres de graça. [...] Eu lembro do nome de todos os professores [...]. (20 de junho de 2006).
Então, Belchior veio do Colégio Sobralense para o Liceu em Fortaleza e, antes de iniciar seus estudos na universidade, por ainda não ter idade suficiente para prestar vestibular, ingressou em um curso de filosofia com os frades capuchinhos. Nas palavras de Belchior: “Chamava noviciado, lá era um negócio que era religioso, rigoroso, tinha um voto de pobreza, obediência e castidade [...] o certo é que foi um período rigoroso [...].” (20 de junho de 2006).
No caso de Fausto Nilo, o ensino através de instituições religiosas como alternativa de ascensão social ficou apenas como possibilidade. Contudo é interessante observar que, mesmo sem ter optado pelo seminário, essa era uma realidade muito presente. Tanto é assim que o próprio Fausto lembra ao falar de sua formação:
[...] estudava no grupo escolar, na cidade não tinha ginásio, então chegava um limite que você tinha que escolher se você ia trabalhar no balcão com o pai ou botar uma loja, não sei quê, casar, morar por lá; ou se pretendia sair pra se educar mais, quer dizer, prosseguir na parte da educação ginasial, científica etc. E isso só tinha duas maneiras: ou você ia pra casa de algum parente pra estudar aqui em Fortaleza, no meu caso, ou você ia pra um internato, podia ser em Baturité, Missão Velha[24], tinha os internatos de padres. Eu confesso que o internato eu nunca desejei não. Eu ouvia estórias dos meus primos, dos amigos e eu não tinha vontade, eu queria ficar em Quixeramobim. Mas aí eu próprio tive a idéia, um dia, de dizer que eu ia pra Fortaleza; cheguei numa hora do jantar lá e comuniquei assim meio de surpresa, meu pai não achou boa a idéia porque eu tinha que trabalhar no comércio, aí minha mãe topou e ela era uma mulher muito determinada. (12 de junho de 2006).
É interessante quando Fausto pontua que para dar continuidade aos estudos tinham que optar entre seguir para Fortaleza ou para um internato; o que sinaliza a busca consciente das famílias por uma ascensão social.
E Rodger declara que também cogitou estudar em um seminário: “Eu me interessei em ir para seminário, acho que foi influência do meu primo Gaudioso. A mãezinha é que não se interessou muito.” (6 de novembro de 2006).
Continuando a análise da educação formal, verificamos que dos doze entrevistados apenas a Téti não chegou a ingressar na universidade; dois ingressaram, mas não concluíram, Belchior que cursou mais da metade do curso de medicina e Fagner que entrou no curso de Arquitetura na Universidade de Brasília (UnB) e saiu ainda no primeiro ano; nove deles concluíram os cursos de nível superior e cinco chegaram à pós-graduação.
1. Augusto Pontes tem uma formação técnica de nível médio como contabilista e duas superiores: bacharelado e licenciatura em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e bacharelado em Comunicação nas opções de jornalismo, publicidade e propaganda, rádio, TV e cinema pela UnB;
2. Cláudio Pereira iniciou quatro cursos. Em decorrência de um acidente de trânsito, ficou paraplégico e passou quatro anos sem estudar. Sempre envolvido com as agitações políticas e culturais da universidade, passou 14 anos até que concluiu bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC);
3. Dedé fez parte da primeira turma de bacharelado em Engenharia Civil da UFC;
4. Ednardo concluiu o curso de Engenharia Química na UFC;
5. Fausto Nilo concluiu Arquitetura na UFC;
6. Francis Vale concluiu Direito na UFC;
7. Ricardo Bezerra concluiu Arquitetura na UFC;
8. Rodger concluiu Física na UFC;
9. Tânia cursou um ano de Serviço Social na UFC, saiu e foi fazer Economia Doméstica na Universidade de Viçosa em Minas Gerais, que era estadual e depois foi federalizada.
Chegaram à Pós-Graduação:
1- Augusto Pontes, com mestrado em Comunicação para o Desenvolvimento pela UnB;
2- Dedé Evangelista, com mestrado em Física pela Universidade de Illinois (Estado dos Estados Unidos de mesmo nome) e doutorado na Dinamarca (Brasília-Dinamarca);
3- Ricardo Bezerra, com mestrado no Arizona em Arquitetura Paisagística, depois um curso de especialização na Inglaterra em Saneamento Básico pra área de baixa renda e doutorado na Universidade de Nottingham;
4- Rodger, com mestrado em Física pela UnB;
5- Tânia, com mestrado em Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).
Note-se que dos cinco com pós-graduação dois, Dedé e Ricardo Bezerra chegaram ao doutorado.
Essas são informações que nos levam a refletir sobre esse conjunto de pessoas na qualidade de artistas. Um grupo de letrados, que chegaram a um desenvolvimento formal, acadêmico relevante, mas que investiram na formação musical por outras vias, como veremos nos tópicos iniciação musical e rádio, em que falaremos sobre a influência desse importante aparelho tecnológico na formação dos sujeitos. Outro dado interessante é que dos doze, cinco chegaram à pós-graduação e desses nenhum ganhou publicidade nacional.
O investimento na carreira em busca da sobrevivência através da música, a inserção no mercado fonográfico é uma tarefa que requisita um conjunto de habilidades a serem desenvolvidas, e não existe uma cartilha com um método explícito ensinando, é no embate com o mercado que os mesmos vão desenvolvendo suas estratégias de consagração e descobrindo as regras, na maioria implícitas, de construção de seus nichos, firmando seus nomes como marcas que vendem e que interessam à indústria fonográfica. A sobrevivência mercadológica dos cantores e compositores da música popular brasileira não se explica pela qualidade estritamente estética, ainda que a mesma não seja irrelevante.
As palavras de Tânia Cabral trazem algum esclarecimento a esse respeito:
[...] uma coisa está muito clara na minha cabeça, é que eu acho que entre o Fagner que participou com uma música naquele disco, o “I Festival Aqui” e o Fagner que está hoje, eu acho que ele não foi seguindo esses outros momentos, ele foi já criando a estrada dele. Isso também não quer dizer que pelo fato da carreira dele ter muito mais evolução, que eu reconheça alguma qualidade superior no que ele faz não, do que os outros fazem e do que continuam fazendo. Eu acho que não é pela linha da estética que você vai entender essa projeção dele, inclusive o próprio Fausto Nilo, o Fausto tem uma carreira nacionalmente reconhecida como letrista, e, no entanto, nesses momentos nem poderia se projetar o que viria a ser a carreira dessas duas pessoas. (18 de julho de 2006).
Podemos aqui chamar a atenção para o fato de que a opção pela carreira acadêmica requer um volume de investimento que não é compatível com o que se requer para uma carreira de consagração nacional na música popular. O que explica em parte, o fato de existirem compositores com relevante produção musical, com um bom nível de sofisticação estética, mas não foram “reconhecidos” pela mídia; e sendo esta uma das principais formadoras de opiniões em massa, parte dos compositores se mantiveram no anonimato.
Retomando os dados: Augusto Pontes, Dedé, Ricardo Bezerra, Rodger e Tânia chegaram à pós-graduação. Os quatros últimos ingressaram no magistério na Universidade Federal do Ceará. Augusto Pontes lecionou na Universidade de Brasília, Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Universidade Federal do Piauí, se dedicou à publicidade, ou seja, continuou trabalhando com criação no âmbito das artes e chegou a ser secretário de cultura do Estado do Ceará. Téti, que se casou com Rodger, seguiu os passos de seu companheiro no sentido de um investimento mais modesto na projeção artística, foi produtora de programas radiofônicos na Rádio Universitária FM. Dos sujeitos da nossa pesquisa, Cláudio Pereira e Francis Vale conviveram e participaram como agenciadores de eventos culturais, viagens e algumas produções, mas não tinham pretensões de optar pela arte como forma de projeção nacional de seus nomes. E, por fim, há os outros quatro que projetaram e consagraram seus nomes na música popular brasileira: Belchior, Ednardo, Fagner e Fausto Nilo.
Com os dados acima, podemos verificar que a dedicação à academia dos cinco que chegaram à pós-graduação e ao ensino superior na qualidade de professores os trouxe durante um longo período para um outro campo. É importante, contudo, registrar que mantiveram algumas atividades artísticas, com exceção de Dedé Evangelista que se dedicou exclusivamente à academia. Por exemplo, Augusto Pontes direcionou suas atividades à publicidade; Ricardo Bezerra gravou dois discos e sua atividade como professor da Faculdade de Arquitetura, mesmo que seja uma atividade de qualidade acadêmica, traz uma interface com a criação artística; Rodger gravou mais dois discos, foi um dos fundadores da Rádio Universitária FM, se dedicou ao teatro e ao cinema e Tânia gravou um disco.
Os demais, que também tiveram seus investimentos limitados no que se refere à consagração de seus nomes no cenário musical nacional, também se mantiveram ligados ao campo das artes: Cláudio Pereira se dedicou às políticas culturais da cidade e chegou a ser secretário de cultura da cidade de Fortaleza; Francis Vale se dedicou ao serviço público como fazendário do Estado do Ceará e paralelamente desenvolveu carreira como cineasta; Téti gravou mais quatro discos e manteve-se gravando como convidada em discos independentes e em projetos culturais incentivados pelo Estado.
Portanto, dos doze, cinco (Augusto Pontes, Dedé Evangelista, Ricardo Bezerra, Rodger e Tânica Cabral) se dedicaram à academia, três (Cláudio Pereira, Francis Vale e Téti) por motivos variados mantiveram maior volume de seus investimentos artísticos em Fortaleza e quatro (Belchior, Ednardo, Fagner e Fausto Nilo) desenvolveram estratégias que os lançaram como artistas nacionais.
Apesar da clivagem percebida em suas trajetórias, o ambiente universitário é comum a todos e as formas que se iniciam na música também trazem alguns aspectos que apontam certa unidade estética.
2.3 Iniciação musical
Os eventos familiares irrefutavelmente marcam as formas de percepção da realidade, constroem noções que passam a atuar como pré-noções, que são incorporadas, constituindo um conjunto de conceitos a partir dos quais a pessoa lê a realidade. As opções pela arte certamente são decisões tomadas individualmente, porém é possível perceber que as mesmas são feitas com base em desejos que são forjados nas relações sociais.
Os sujeitos quando se referem às suas formações musicais invariavelmente retomam suas origens familiares, o que confirma a força constituidora do habitus primário. O gosto musical dos pais e dos parentes mais próximos aparece recorrentemente em suas declarações.
Belchior lembra da influência de seus tios e da sensação de inclusão no meio cultural:
[...] eu cantava algumas músicas que meus tios cantavam, um repertório muito grande de música popular, alguns compunham, não sei quê, mas no sentido profissional, era uma coisa mais de prazer e também de uma certa inclusão no mundo cultural [...]. (20 de junho de 2006).
O aspecto simbólico da inclusão já nos aponta a significação social que constitui e ao mesmo tempo da qual é constituída a área artística. A arte sobrevive desse valor forjado no cotidiano. Seu valor não está em uma “substância arte”, ideal, transcendente; o significado não está na coisa, mas nas significações criadas no campo artístico que estão relacionadas aos objetos artísticos e tudo isso inserido em uma teia social que se movimenta segundo forças historicamente constituídas.
Bourdieu (2001, p. 209) nos apresenta sua posição:
A maior parte das obras humanas que temos o hábito de considerar como universais – o direito, a ciência, a arte, a moral, a religião etc. – são indissociáveis do ponto de vista escolástico e das condições econômicas e sociais que as tornaram possíveis e que não têm nada de universal. Elas são engendradas nesses universos sociais muito específicos que são os campos de produção cultural (campo jurídico, campo científico, campo artístico, campo filosófico etc) [...].
A declaração de Belchior se relaciona à pergunta feita anteriormente: como fazer uma música cair no gosto do público, seja do grande público, seja de uma roda de amigos? Apropriando-se das significações simbólicas desses objetos, artísticos o sujeito sente-se aceito. Imprimindo em sua obra certos elementos estéticos, os ouvintes gostam sem necessariamente saber explicar porque gostam e não raramente essa sensação torna-se mágica. É óbvio que isso não esgota a explicação da pergunta anteriormente feita, mas dá conta de parte da mesma. Existe um conjunto de fatores que podem nos aproximar do entendimento do “gosto”. Para nosso trabalho, estamos compreendendo a formação do gosto artístico dos sujeitos em questão, verificando algumas interseções que explicam a convergência para espaços em comum e suas afinidades estéticas.
Continuando com Belchior, ele nos informa da sua relação com a música ainda em tenra idade:
[...] o meu avô materno tocava sax, tocava flauta e até hoje eu tenho a flauta que meu pai tocava, a flauta da família; eu nunca o vi tocando sax, dizem que ele tocava, mas flauta eu vi, como tem essa ligação flauta-sax, então deve ter sido verdade. Mas eu me lembro que passou muitas férias lá e a minha mãe cantava no coro da igreja, tinha aquelas festas religiosas muito continuadamente, o ano todo tinha novena, Santo Antônio, tinha São Pedro, São João, a festa da padroeira da cidade, missa cantada [...]. (20 de junho de 2006).
A convivência familiar, ouvindo os grandes intérpretes da música popular daquele período, não deixou de contribuir para a formação daquele que viria ocupar um espaço no campo musical brasileiro relativamente semelhante na qualidade de um cantor da música popular brasileira. Claro que isso ocorreu em outra configuração mercadológica, já que o mercado veio se segmentando com o decorrer do tempo. O conceito de um bom cantor na década de 1940 era muito mais unificado. A bossa-nova e depois da música trazida por essa geração das décadas de 60 e 70, as músicas de cunho social, as músicas de protestos em contra-ponto com a jovem guarda, depois as bandas de rock nacional nos anos 80 e os axés music e músicas sertanejas com superproduções trazem gramáticas musicais que se distinguem umas das outras. Mas, retornando ao sucesso que Belchior chegou a alcançar em meados da década de 70, é certamente o de um cantor de música popular conhecido em todo o Brasil e que, mudando o que deve ser mudado, assemelha-se às posições daqueles cantores que habitaram na infância o seu imaginário.
Belchior também ressalta a importância dos estudos no colégio:
[...] estudei no colégio dos padres, onde era obrigatório estudar música, os rudimentos da música, canto orfeônico, participava do coral, disso dependia a matéria de música, cantando, os professores aceitavam, os padres aceitavam que embora você não soubesse muita teoria, você cantasse ou tocasse instrumento, são exemplos muito bacanas, eu acho que até um pouco avançado pra um currículo mais rigoroso disciplinarmente, como era na época. (20 de junho de 2006).
Percebemos assim uma mescla de iniciação musical formal, que era comum nos colégios, e uma forte influência fora do ensino formal especialmente originado no convívio familiar. Verificamos essa dupla influência, também na fala de Ednardo:
No curso chamado de ginasial, estudei canto orfeônico, havia obrigatoriedade no currículo escolar instituída no método de Villa-Lobos, 1ª voz, 2ª voz, 3ª voz e contra-ponto, os alunos achavam meio chato cantar as peças, “O Sapinho da Lagoa”, “Viva o sol” etc... Queríamos mais que a teoria, e era muito bom quando convencíamos o professor que era maestro e músico clarinetista e tinha uma banda em Fortaleza, o mestre José Maria Silva, a tocar em seu clarinete, músicas populares, chorinhos de Pixinguinha, e outros clássicos, e vez por outra músicas populares da época e também de sua própria autoria, isto feito às escondidas durante aulas de canto orfeônico, por insistência dos alunos, ele sabiamente levava seu instrumento e aí sim a moçada delirava. (11 de junho de 2006).
Além dos rudimentos musicais adquiridos na escola, Ednardo também foi iniciado em música com uma formação mais específica, mas por fim, como é comum a todos os sujeitos desse trabalho, opta pela música popular que tem como principal opção o autodidatismo, desenvolvendo métodos de aprendizagem inteiramente pessoais e informais.
Fiz curso de música clássica estudando piano durante três anos com a professora Maria José Uchoa, e depois mais dois anos de música popular, também em piano com o músico e professor Oscar Ribeiro. Estudei um pouco de acordeom com a professora Neide, no Bairro de Fátima, fã do acordeonista Mário Mascarenhas, e um pouco de violão com o músico e violonista cearense Maciel, de tônica romântica. Mas eu já estava em outra turma e caminho, então preferi ser autodidata. (10 de junho de 2006).
Como veremos, a transição do piano para o violão também ocorre com outros sujeitos.
Fagner lembra dos pais, dos irmãos e dos amigos do bairro e da ligação familiar com Evaldo Gouveia[25] como importantes influências musicais:
Papai não parava de cantar aquelas músicas, aquele lamento árabe, era estranho, diferente [...]. O Fares era o seresteiro conhecido aqui; Marta também gostava; Elizete[26] gostava. Evaldo Gouveia é afilhado do papai e da mamãe e eles se criaram na rua Floriano Peixoto que foi onde eu nasci. A vó do Evaldo morava em frente à casa da gente e tinha essa amizade; e o Fares era o cantor, o Evaldo tocava pra ele cantar! Eu via de menino, eu me lembro, mesmo pequenininho, mas eu me lembro da vó do Evaldo, eu me lembro dele, me lembro da cena. Eu vi essa cena [...] eu tava muito no popular da esquina, tocar o violão, tirar música... Nelson Gonçalves, Francisco Alves, Orlando Silva. Mas pra pegar o violão só dos mais fáceis... Esses mais populares mesmo. E muito essas músicas que chamam hoje de brega ou popular tudo a gente escutava demais aqui, misturado com Luiz Gonzaga, com tudo. E depois, quando começou Caetano, um pouquinho mexendo por ali, “A banda”: Chico Buarque, com Nara, aí começou a abrir a cabeça um pouquinho, mas era bem populesco mesmo [...]. (19 de junho de 2006).
Essa declaração de Fagner reconstitui de maneira sucinta parte importante da sua trajetória formativa do gosto musical, o ouvido acostumado aos lamentos árabes do pai, a referência de um irmão mais velho seresteiro cantando ao som de Evaldo Gouveia, que se consagrou na música popular brasileira como grande compositor e violonista popular, os grandes intérpretes, a referência das irmãs e as primeiras influências de Caetano Veloso, Chico Buarque e Nara Leão. O primeiro grande público que acolheu sua música foi o mesmo desses últimos – os estudantes universitários – contudo, em sua trajetória Fagner retoma com muito mais força as influências dos considerados grandes intérpretes da música brasileira no período da sua infância, quando das suas primeiras audições musicais com interesse formativo. Nessa retomada, o mesmo busca ampliar seu público de uma elite universitária para a grande massa consumidora de discos e de sucessos de novelas, de músicas românticas e de grande aceitação popular.
Retornando à iniciação musical mais especificamente relativa ao instrumento musical, Fagner fala do violão que se torna o principal instrumento de acompanhamento desses futuros consagrados artistas:
[...] comecei a estudar no professor Cirino [...] por sinal tio do Cirino[27], mas tive poucas aulas lá. E na Dom Manuel[28] tinha um grupo ligado à mulher do Fares, meu irmão, que é muita juventude ali, muita menina tocando violão bem, eu já saí da aula, que era muito acadêmico, pra ver as pessoas fazerem coisas diferentes, no mesmo quarteirão, então eu larguei a aula por causa do quarteirão; comecei a namorar com as meninas e comecei a tocar violão com quem sabia pestanas. E aí comecei um pouquinho ligado a essas músicas mais simples e tal. Quando o Piti chegou, aí sim, minha cabeça abriu, a nível de violão foi o Piti, porque uma coisa é você escutar o que as pessoas tocam que é difícil pra você e outra é você ver a pessoa tocando. Então foi minha grande escola de violão. Praticamente, muita coisa que eu aprendi e que abriu a minha cabeça de violão, meu violão era muito quadrado, ainda é, mas o pouco que abriu foi o Piti que com aquela força, aquelas harmonias, aquelas melodias totalmente, ninguém sabia isso aqui. Então essa relação de instrumento foi com o Piti. (19 de junho de 2006).
O aprender olhando o outro, imitando, “brechando” os acordes, como veremos também nas falas de Ricardo Bezerra e Tânia Cabral, revela essa formação musical muito mais informal. Verificamos que essa é também uma forma de construção de conhecimento válida. Olhar e buscar decifrar como o colega toca é o mesmo que querer entender como o outro entende. Esse processo de aprendizagem que mergulha no universo do outro não foi levado em conta pelas metodologias tradicionais. Por vezes o professor quer que o aluno pense como ele, mas nem sempre faz o caminho inverso. Esse isolamento gera um divórcio entre estudante e professor e aquele encontra quem se interesse por ele em outros ambientes, como por exemplo, nos amigos do bairro. A declaração de Fagner, quando diz: “Eu larguei a aula por causa do quarteirão”, deixa clara a existência de um fosso criado entre o ensino formal e o aprendizado prazenteiro e cheio de cumplicidades encontrado fora das escolas.
Fausto Nilo nos leva de volta às origens familiares e nos fala de sua formação musical e artística:
[...] minha mãe trabalhava cantando, eu tenho gravações dela inclusive, era uma pessoa que trabalhava cantando, então, uma parte desse repertório que a gente recorda, os filhos todos conhecem de tanto ela cantar, aquelas canções, muitas delas do período anterior às gravações, aquelas modinhas, aquelas canções que as pessoas aprendiam, num caderno passava pro outro [...]. Algumas, outras eu já descobri que eram gravações antigas, algumas que eu descobri, músicas cariocas de disco mesmo, mas tem algumas que são bem mais antigas [...]. Mas o meu pai também cantava; só que o papai era diferente ele não cantava no trabalho, ele tinha um horário depois do jantar que ele apagava a luz no recanto da casa e punha a mão aqui na testa, assim, e cantava, cantava muito tempo e ali ninguém podia atrapalhar, se você cantasse ou assobiasse ele parava e dava um cagaço[29], ele tinha uma noção de que quando a pessoa cantava ninguém atrapalhava, porque tinha que respeitar. [...] quando ele cantava nessa seresta dele sozinho, ninguém podia chegar perto ali e atrapalhar não, entendeu? “Ah! Que música linda!”, e cantar também, aí ele parava de cantar, entendeu? Então o meu pai tinha esse hábito. E as minhas tias, porque eu morava ao lado da família do avô, com várias tias, com várias mulheres, todas cantavam, cantavam muito, cantavam na rede se balançando, sabe aquela estória, então eu nasci num ambiente doméstico de muita cantoria [...]. (12 de junho de 2006).
O gosto musical dos pais é reconhecido pelos sujeitos como formador de suas opções estéticas, de seus próprios gostos. O pai de Fausto valorizava o cantar e demonstrava o respeito que ele tinha pela música, além de exigir esse mesmo respeito quando cantava. Essas memórias não são simples registros cerebrais, são lembranças com cargas afetivas que se convertem efetivamente em parte da constituição musical dos sujeitos.
Sobre a memória afetiva, André Haguette (1996, p. 87) confirma nossa posição:
A conservação e a lembrança de fatos, acontecimentos, coisas, situações etc são facilitadas ou dificultadas por fatores subjetivos, tais como importância pessoal ou social, significado emocional, afetivo ou intelectual, prazer ou dor, etc do acontecido. A memória não é o simples registro no cérebro; é o registro com um sentido ou com um significado para nós e para os outros.
Fausto Nilo ainda complementa suas lembranças formativas musicais com a figura de seu avô paterno:
[...] além de umas coisas interessantes, que eu recordei muito depois, por exemplo, meu avô paterno [...] ele era um cara limitado pra cantar, mas ele gostava muito de música, então aquelas festas na casa dele, eu adorava, porque eu via desde cedo o cara com o “jazz” – o “jazz” você sabe o que é, né? Não é o “jazz” não, o “jazz” que naquela época se chamava era a bateria, que é uma coisa da pós-guerra. Eu nasci ouvindo falar isso: “Hoje vai ter uma festa e o cara vai trazer o ‘jazz’”, uma bateriazinha acho que feita aqui pelo Ceará, porque era tosca... o acabamento; então o meu avô contratava esses caras com o “jazz”, um sanfoneiro e às vezes um violão de base, e com isso eles faziam aquelas festas e eu adorava porque eu via desde cedo os caras ensaiando e tudo, naquele dia eu nem ia pro colégio, ficava por conta disso. E ele adorava também cantoria, ele era o maior contratador de repentistas [...]. (12 de Junho de 2006).
Téti reforça a idéia da influência familiar e escolar com suas lembranças:
Meu pai tocava gaita, violão e gostava muito de cantar, principalmente ao som do piano tocado por meu irmão mais velho que estudou piano durante dez anos. Aliás, a maioria dos meus irmãos e eu tivemos aula de piano. Durante quatro anos estudei piano em casa com professora particular, afora as aulas mantidas no colégio com a irmã plácida [...]. Minha irmã, Eliane, que tem uma voz belíssima, tinha um caderno super grosso com muitas músicas que ela copiava – principalmente as cantadas por Dalva de Oliveira e Ângela Maia. Eu adorava pegar esse caderno e ficava horas e horas me embalando na rede, empurrando o pé na parede e cantando, cantando... Essa prática se estendeu até o Colégio Sagrado Coração de Jesus onde eu participava das festas e fazia parte, também, do coro da igreja cantando nas missas dominicais.
Continuamos trazendo as declarações dos sujeitos a respeito da influência familiar na constituição do gosto artístico. Ricardo Bezerra também revela esse aspecto:
Eu já nasci numa família musical, na minha casa tinha piano. Quando eu era novo minha mãe começou a aprender acordeom, meu pai era um fã ardoroso de música clássica, ele praticamente só escutava música erudita, nós tínhamos o costume, ainda, na época de almoçar e jantar todos juntos, e todo almoço e todo jantar tinha um fundo musical de música erudita [...]. Minha família toda, meus irmãos todos tinham estudado piano com as irmãs Menezes [...] aí quando eu tinha uns sete anos mais ou menos minha mãe me mandou estudar com a melhor professora de piano que tinha na cidade, que se chama Vanda Costa e nessa época eu comecei estudando no Conservatório; [...] minha mãe tinha mais ou menos um plano pra mim pra eu ser concertista, e como ela era do Aracati e já tinha nascido o Jacques Klein – o Jacques Klein se tornou um pianista de nível internacional, ganhou prêmios internacionais[30] – [...] ela queria que eu fosse o novo Jacques Klein da vida, só que com dois anos de estudar piano, aqueles exercícios começaram a me encher o saco, eu não tinha paciência, aí eu comecei logo a tirar as músicas populares que rolavam na época e aqui acolá eu enganchava numas harmonias [...]. (6 de junho de 2006).
Percebemos, pois, uma iniciação formal que sofre um desvio para a música popular, assim como declarado por Belchior e Ednardo. Existiu uma iniciação formal, mas que foi substituída pela informal. O piano, àquela época, representava a música formal, oficial, de famílias ligadas à aristocracia e o violão estava muito mais ligado à opção popular.
[...] na época eu tinha uma prima, a Lurdinha Figueiredo, que era professora de violão e aí duas das minhas irmãs foram estudar violão com essa minha prima, a Lurdinha Figueiredo, e então meu pai comprou um violão pra casa e aí quando elas chegavam da aula, traziam os cadernos e quando elas terminavam de estudar eu pegava o violão e fazia lá a mesma coisa e aí foi quando eu me introduzi ao violão. Aí fiquei violão e piano e tal aquela coisa, tocava aquelas músicas no violão que as minhas irmãs aprendiam lá com a nossa prima, aí já fui entrando na adolescência, e aí quando foi entrando na adolescência, apesar do piano não ter ficado esquecido, mas o violão se sobressaiu porque era mais portátil, porque dava pra fazer serenata, porque você podia sair com o violão debaixo do braço, com o piano você não pode sair como o piano debaixo do braço, aí eu comecei a desenvolver o violão e aí veio a “bossa-nova” [...] era nessa época que a gente ficava brechando os acordes, ficava ali olhando [...]. (Ricardo Bezerra, 6 de junho de 2006).
Mesmo optando pela música popular, tirando músicas de ouvido e escolhendo o violão pela sua praticidade com a possibilidade de ir à rua encontrar com os amigos e namoradas para tocar, ainda assim, os sujeitos deixam claras suas iniciações formais:
[...] tinha aula de solfejo, de canto orfeônico que era dado por aquele Antônio Gondim, aí a gente aprendia a manosolfa, aquele negócio dos dedos, a gente cantava, tentava cantar em duas vozes, então tinha educação musical na escola; tinha também negócio de jogral, participava de jogral... Era uma piada, hoje seria uma coisa assim totalmente anacrônica. (Ricardo Bezerra, 6 de junho de 2006).
O aprendizado do violão, ainda que com algumas aulas de iniciação, se desenvolve mesmo é na convivência entre os amigos, um olhando o outro, aprendendo um com o outro. Fagner já apontou isso e podemos confirmar com Ricardo Bezerra:
[...] eu gostava de tocar “bossa-nova”, aprendi muita “bossa-nova” com o Rodger, o Rodger sempre foi um excelente violonista, sabia uns acordes fantásticos e eu ficava ali olhando, brechando os acordes que Rodger ia dar e aprendo muita “bossa-nova” com o Rodger [...] a gente brechava muito o Cirino, que o Cirino sempre foi um violonista virtuose. Mas só que os acordes ele dava tão rápido que a gente não tinha velocidade pra brechar [...]. (6 de junho de 2006).
O “brechar” acordes, olhar o jeito como o outro faz, como já apontamos antes, é uma prática ligada à tradição da música popular. Mesmo com certas ousadias harmônicas e melódicas, suas habilidades nos instrumentos e técnicas musicais certamente não se aproximam à tradição da música erudita.
Tânia Cabral também fez o mesmo trajeto da iniciação formal com o piano e em seguida a opção pela música popular associada ao violão “[...] porque eu estudava música, eu estudava piano quando era criança, quando eu fui pra Viçosa, aí foi quando eu ganhei o meu primeiro violão [...].” (18 de julho de 2006).
Com Tânia Cabral também podemos perceber o campo musical da cidade de Fortaleza. Somente nos festivais nossa entrevistada veio encontrar com os artistas na qualidade de um grupo de amigos que desenvolviam parcerias e se encontravam com freqüência em Fortaleza. Sua trajetória até então é paralela, já que durante o período universitário ela estava cursando Economia Doméstica na Universidade de Viçosa em Minas Gerais, depois, entre outros trabalhos, foi para Tefé no Amazonas.
Sobre suas aulas de piano:
D. Maria Helena Barreto, esposa do Zenon Barreto, pintor. Foi a mesma professora da Mércia, eu conheci a Mércia daí. A Dinda, minha irmã, conhecia a Mércia de dentro da universidade, mas eu conheci a Mércia já das aulas de piano, conheci a Mércia quando ela era aluna da D. Maria Helena. (Tânia Cabral, 18 de julho de 2006).
Vamos identificando um campo musical na cidade de Fortaleza e um sub-campo musical que será futuramente, em São Paulo, chamado de Pessoal do Ceará. Mércia e Tânia se encontram pelo interesse comum por música, dentro desse campo musical mais abrangente existente na cidade.
[...] eu era apaixonada por piano, alucinada por coisa de música [...] eu devo ter começado com seis anos pra sete anos, bem criança mesmo, porque tem uma fotografia até sentada no piano, nesse negócio de concerto, eu imagino que ali eu devia estar com dez anos [...] eu devo ter começado com seis, sete anos com a D. Maria Helena a estudar piano. E era aquele estudo clássico mesmo de piano [...] eu tinha facilidade, naquela época, de ouvido, pegava o som de ouvido, aí tinha preguiça de ler as partituras, procurava ouvir pra ver se adivinhava [...]. Quando eu fui pra Minas eu não tinha perspectiva disso, continuar a tocar ou ter aulas, talvez até falta de iniciativa, alguma coisa, porque talvez em Viçosa tivesse alguém que me ensinasse, mas não... Era também aquela fase, o violão aparecia como uma coisa boêmia, íntima, gostosa e tal e eu peguei o violão. Violão nunca toquei por partitura, ora se eu já não queria olhar pras partituras que eu aprendi imagine... nunca né... aí o violão me deu liberdade pra dizer com isso eu não tenho compromisso com nada a não ser o meu entendimento com ele e eu acho que foi uma boa, tanto que hoje, nunca no teclado, nunca consegui fazer nada, meu instrumento de criação era e é ainda o violão [...]. Eu aqui já procurava aquela coisa. Às vezes a pessoa toca outro instrumento e tudo, teclado dá uma visão boa de harmonia, essa coisa do básico, eu olhava as pessoas tocarem. Eu freqüentava o Conservatório, essas coisas todas e... aí só no “olhômetro”, aí eu olhava as pessoas, naquele tempo se olhava as posições, nem tinha essa nomenclatura que tem agora [...] as cifras e tudo, já localiza direitinho, mas se falava aquela coisa quadrada era primeira posição, tinha aqueles caderninhos, segunda isso, aquelas coisas; tinha aqueles caderninhos que até hoje ainda tem, as revistinhas, então eu olhava isso. (Tânia Cabral, 18 de julho de 2006).
Com essas declarações de Fagner, Ricardo e Tânia fica clara essa forma de aprendizagem na música popular, através do que Tânia chamou de olhômetro e o Ricardo Bezerra de brechar os acordes. Também observamos as iniciações musicais formais através do piano e a opção seguinte pela música popular adotando concomitantemente o violão como instrumento de acompanhamento. Ainda relacionado ao estudo formal, os sujeitos da pesquisa põem em relevo as aulas de música na escola como acesso à linguagem musical e no caso de Belchior as aulas no seminário. E suas lembranças afetivas os transportam com especial detalhamento ao convívio no seio familiar, às músicas compartilhadas com os pais, irmãos, tios e amigos de infância.
Podemos verificar uma formação múltipla, de aprender olhando, mas também de compreender um pouco de teoria musical, o que traz realmente um novo modelo musical que não é erudito, não é formal, mas também não é totalmente leigo; há um interesse deliberado e consciente em aprender alguns aspectos da linguagem musical.
Vamos selecionar nas declarações os dados e organizá-los para melhor visualização do que estamos expondo. Encontramos quatro formas de aprendizagem musical:
1. No ambiente familiar – Belchior cita seus tios, seu avô materno e sua mãe nas festas religiosas; Fagner cita seu pai, sua mãe, os irmãos Fares, Marta e Elizete e o violonista Evaldo Gouveia que na qualidade de afilhado de seus pais e freqüentador da sua casa faz parte da família; Fausto Nilo cita a mãe, o pai, as tias e o avô paterno; Ricardo Bezerra cita o pai, a mãe e todos os irmãos; e Téti cita o pai e os irmãos;
2. Na escola – Belchior cita que estudou os rudimentos da música, canto orfeônico e participou de coral no colégio dos padres; Ednardo estudou canto orfeônico e contraponto com o professor José Maria Silva; Ricardo Bezerra tinha aula de solfejo e canto orfeônico com o professor Antônio Gondim; Téti participava das festas e das missas dominicais do Colégio Sagrado Coração de Jesus;
3. Com professores particulares – Ednardo estudou música clássica no piano durante três anos com a professora Maria José Uchoa, e depois mais dois anos de música popular, também em piano com o músico e professor Oscar Ribeiro, acordeom com a professora Neide e um pouco de violão com o músico e violonista cearense Maciel de tônica romântica; Fagner com o professor Cirino; Ricardo Bezerra estudou piano com a professora Vanda Costa e teoria com Orlando Leite no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno e aproveitou as aulas de violão que a professora Lurdinha Figueiredo ministrava para suas irmãs em casa; Tânia Cabral estudou piano com Maria Helena Zenon Barreto, a mesma professora da musicista Mércia Pinto; e Téti estudou piano com professora particular em casa;
4. Entre amigos – Fagner declara suas experiências com colegas do quarteirão que já sabiam fazer pestanas[31] e posteriormente a importância do aprendizado olhando tocar o baiano Piti, que também foi apontado por outros sujeitos como referência artística; Ricardo Bezerra registra a busca do aprendizado brechando os acordes bossanovísticos de Rodger e o virtuosismo técnico de Cirino; e Tânia Cabral diz ter aprendido violão no olhômetro, vendo os outros tocarem.
Esse conjunto de experiências musicais nos informa um percurso de aprendizagem. Nesse sentido estamos desvelando um currículo que não estava muito claro. Esses aspectos do processo de aprendizagem que por vezes são deixados de lado guardam grande força formadora que advém do contato entre os pares proporcionando uma troca que atua como estruturante das formas de apreensão da realidade. A escola, a família, os professores particulares e o contato com outras pessoas de interesse comum formam uma estrutura de relações que são transmitidas de prática a prática, essas relações nem sempre são explicitadas, elas fazem parte de uma pedagogia do silêncio; nas palavras de Bourdieu (2005, p. 22):
Como se vê bem nas sociedades sem escrita e sem escola – mas também é verdadeiro quanto ao que se ensina nas sociedades com escola e nas próprias escolas – numerosos modos de pensamento e de ação – muitas vezes mais vitais – transmitem-se de prática a prática, por modos de transmissão totais e práticos, firmados no contato direto e duradouro entre aquele que ensina e aquele que aprende (“faz como eu”). Os historiadores e os filósofos da ciência – os próprios cientistas, sobretudo – têm freqüentemente observado que uma parte importante da profissão de cientista se obtém por modos de aquisição inteiramente práticos – a parte da pedagogia do silêncio [...].
No final da década de 60 veio para Fortaleza o compositor, cantor e violonista baiano, citado anteriormente, conhecido como Piti, que participou de forma marcante desse tipo de aprendizagem de prática a prática. Esse artista veio participar de algum evento que não foi informado precisamente pelos sujeitos; conforme as declarações ele fazia parte de um grupo de pessoas que mais tarde formariam o movimento baiano Tropicália.
Segundo Ednardo:
Quem permeabilizou esse grupo junto a “Tropicália” com o “Pessoal do Ceará”, por incrível que pareça foi um baiano chamado Piti, que é uma pessoa que as pessoas citam muito pouco, mas o Piti foi de uma importância fundamental, o Piti fazia música e teatro lá no teatro Vila-Velha, fazia música e é um dos precursores da “Tropicália” [...]. (11 de junho de 2006).
Trazemos mais uma vez a fala de Fagner que pontua mais diretamente a importância desse artista no aprendizado artístico especialmente com relação ao violão, expressando claramente esse processo que verificamos como relevante no contato direto com outros que já executam com mais desenvoltura as técnicas[32] violonísticas.
Quando o Piti chegou, aí sim, minha cabeça abriu, a nível de violão foi o Piti, porque uma coisa é você escutar o que as pessoas tocam que é difícil pra você e outra é você ver a pessoa tocando. Então foi minha grande escola de violão. Praticamente, muita coisa que eu aprendi e que abriu a minha cabeça de violão, meu violão era muito quadrado, ainda é, mas o pouco que abriu foi o Piti com aquela força, aquelas harmonias, aquelas melodias totalmente, ninguém sabia isso aqui. Então essa relação de instrumento foi com o Piti. (Fagner, 19 de junho de 2006).
Fausto Nilo, que nesse período participava do grupo sem produzir diretamente, pois só iniciou suas parcerias quando viajou para Brasília, confirma a ascendência artística de Piti sobre os menos experientes de Fortaleza reconhecendo que “[...] influía porque viam um cara que tinha um pouco mais de experiência, com uma certa malemolência, um jeitão de compor [...].” (12 de junho de 2006). A influência de Piti parece ter transcendido o aspecto violonístico, chegando a inspirar uma postura artística, um comportamento que traduzia a busca desses estudantes-artistas da UFC de algo diferente do que existia no cenário local e com uma inquietude que se aproximava ao movimento hippie que trazia a liberdade como a principal bandeira. A desnormatização da vida, a luta contra qualquer coisa que lembrasse a burocratização que foi apropriada pelos militares para exercerem um poder abusivo (assunto esse já muito bem explorado na literatura, mas que nunca é demais o registro) fizeram parte do cenário vivido por esses que ficaram conhecidos como Pessoal do Ceará.
Piti encarnava em suas atitudes esse comportamento inquieto que de acordo com Ricardo Bezerra proporcionava
[...] uma revolução, porque o Piti ele tocava, só faltava pular, só faltava se soltar das cadeiras de pular porque ele não só tocava, ele interpretava. Ele tocava com a caixa de fósforos na mão [...] nas cordas as caixas de fósforos se acabavam, os palitos já saiam, no que ele usava a caixa de fósforos, ele fazia uma percussão também, as cordas do violão do Piti era só os cacos, tudo se acabando, tudo esgarçada, era uma loucura, o violão dele era um arranhão só, porque a caixa de fósforos batendo na madeira [...] o Piti então era um super compositor, músicas maravilhosas, super pra cima, muito animadas, muito ritmo, muita coisa [...]. (6 de junho de 2006).
A postura exigida por aqueles que desenvolviam um mínimo de consciência crítica, como foi o caso, em maior ou menor grau, desses jovens apaixonados por arte, era de alguma forma a de se colocar contra o regime militar. A radicalidade do sistema imposto trouxe como conseqüência uma reação também radical. Nesse sentido esses artistas negaram instituições formais, ainda que dentro de uma, a universidade. Por paradoxal que pareça e seja, a própria universidade garantia uma certa liberdade de pensamento.
[...] na época que a ditadura fechou os diretórios em 68 com o AI-5, o diretório da Arquitetura continuou aberto, o diretor fazia de conta que não via o que acontecia lá, mas o pessoal continuava lá, se reunia, ouvia música e o clima de debate, a Escola de Arquitetura tem uma importância muito grande; e esses estudantes de lá, da época, os líderes que tinham lá, eram pessoas que por conta de estudarem mais as coisas ligadas à arte, à cultura tiveram uma influência muito grande nisso. (Francis Vale, 1º de maio de 2006).
Portanto, mesmo dentro de uma instituição formal os mesmos tinham a liberdade de refletir criticamente sobre a mesma e demais instituições de ensino, é nessa ambivalência que apontamos outro importante aspecto que é a ligação desse grupo com o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, ligação essa reconhecida, mas que ao mesmo tempo mantém certo distanciamento, o que confirma a existência de dois sub-campos musicais na cidade de Fortaleza.

CAPÍTULO 3
IDENTIFICAÇÕES E DISTINÇÕES
[...] a história da arte opera, em seu exercício cumulativo,
uma sedimentação similar à da gravidade.
Ela distingue épocas, destaca vultos, aproxima autores e obras,
baliza movimentos e tendências, continuidades e rupturas.
(José Carlos Durand)
Mantendo como norte a questão sobre a constituição do gosto musical dos sujeitos dessa pesquisa vamos trabalhar, a partir das declarações dos próprios artistas entrevistados, com a visualização do espaço social musical da cidade de Fortaleza ampliando para o campo de produção musical brasileiro movimentado através do rádio. Encontramos pelo menos três espaços que se relacionam com os sujeitos da pesquisa: o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno como estabelecimento de ensino que funcionava como a referência da tradição musical erudita da capital cearense; o cenário local da música popular, que para efeito de identificação chamamos de música popular de Fortaleza; e ampliando nossa visão através das falas dos sujeitos, encontramos o cenário musical brasileiro que para identificação chamamos de música brasileira popular, esse espaço social consagrador de grandes intérpretes da música popular do país que vieram da tradição do poderoso rádio, que nas décadas de 30 e 40 do século XX chegou a marcar a história com a época de ouro do rádio.
As lembranças dos sujeitos reconstituem parte de suas infâncias ligadas à família, ao ambiente citadino originário e reforçam a idéia do habitus na qualidade de disposições incorporadas pelos agentes e que são exteriorizadas nas tomadas de decisões. Clareando nosso entendimento temos aqui nas palavras de Bourdieu (2001, p. 42) que “o ‘habitus’ é essa espécie de senso prático do que se deve fazer em cada situação.” Esse “senso” que é formado a partir de um conjunto de regras que se apreende no convívio.
As trajetórias individuais fornecem um conjunto de códigos que geram afinidades e reconhecimentos mútuos e concomitantemente estranhamentos exteriores que trazem uma noção de “espaço”, e nos permite identificar um “conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade ‘mútua’.” (BOURDIEU, 2001, p. 18).
3.1 Conservatório de música alberto nepomuceno
No período em que os sujeitos ingressam como estudantes na Universidade Federal do Ceará, em meados da década de 60, o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno figura como centro irradiador da música formal da cidade de Fortaleza, produzindo um sub-campo musical na cidade ligado à tradição erudita, e que apesar das diferenças manteve um certo contato com esses outros jovens estudantes que, mesmo estando mais ligados à tradição popular, também receberam influências formais no ensino de música, em alguns casos no próprio Conservatório de Música Alberto Nepomuceno ou com professoras dessa instituição. Além de chegarem a compartilhar os mesmos espaços nos festivais de música da cidade.
Augusto Pontes aponta uma relação entre Petrúcio Maia, Mércia e Edson Távora com o conservatório:
Teve um contato com o Conservatório. Inicialmente o Conservatório. O Petrúcio sabia tocar piano, Ricardo Bezerra também, o Rodger, Ricardo Bezerra e outros tocavam violão e procuraram desenvolver-se musicalmente pra poder acompanhar o desejo das músicas deles e sem dúvida cresceram nisso. E realizaram um curso, na casa do Dedé com o Edson Távora e outros cursos sobre música [...]. Tinha a Mércia Pinto[33] [...]. O Edson Távora. Agora, alguns entraram pra lá porque faziam parte do Cactus[34], aí passaram a ser alunos do conservatório, como o Edson Távora. (19 de maio de 2006).
Identificamos com Augusto uma declaração que se expande para outros espaços que não têm ligação direta com o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, como a casa do Dedé como ponto de convergência, lugar onde chegou a ser ministrado um curso de música pelo músico Edson Távora para os compositores amadores ainda em formação, as aspirações de Rodger, Ricardo Bezerra e Petrúcio Maia em se desenvolverem musicalmente e o grupo Cactus. Mas porque ao falar do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno Augusto Pontes remete a esses outros espaços de produção musical? Porque sua visão identifica o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno dentro do espaço musical da cidade de Fortaleza. Para se referir ao conservatório não aponta o mesmo como um lugar de relações mais diretamente ligado a ele e seus pares e sim como um sub-campo musical inserido no espaço musical da cidade.
Cláudio Pereira identifica bem a ligação do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno pelo fato de estarem todos mergulhados em um mesmo campo:
[...] na medida em que tudo que é música tem ligação; mas o conservatório sempre é muito mais uma arte mais pro erudito, pro piano; nossa proposta era mais pro popular, era mais pra música popular, tinha assim porque a Mércia Pinto era do conservatório, por exemplo, a Mércia Pinto sempre foi ligada ao conservatório e tinha lá a Tezinha[35] que se apresentou também. Mas o conservatório como uma instituição era muito ligada ao erudito, não era ligada ao popular. (4 de junho de 2006).
Mais uma vez, agora na declaração de Pereira, o piano é identificado com a tradição erudita da música, elencaremos posteriormente as referências a esse instrumento cotejando com as feitas ao violão.
Para Ednardo há uma nítida separação entre esse grupo e o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno.
Na ótica de grande parte das pessoas, onde me incluo, sabíamos que outra turma se formava pelo Conservatório de Música, mas o método de lá, tinha viés de curso acadêmico e conservadorismo que não estimulava entrosamento pleno com a atualidade buscada para aquele momento. (10 de junho de 2006).
Fausto por sua vez, aponta o conservatório até mesmo como lugar de encontro.
Era outro ponto que a gente se encontrava muito porque primeiro tinha os pianos ali, de madrugada a gente pegava um piano daquele [...] as meninas que estudavam lá e tinha o teatro[36] também ali que funcionavam bem nessa época [...]. Tinha a Tezinha, a Mércia, tinha a Eunice[37]. Agora elas tinham a formação de música, diferente da gente, a gente era uns vagabundos metidos, entendeu? Mas não havia conflito com relação a isso não, sabe, dava pra se entender, o fato delas terem a formação. [...] a nossa turma era pretensiosíssima, não ia querer aprender com o pessoal do conservatório, entendeu? Naquela época era um pouco assim. Hoje não, né? Hoje é natural que as pessoas queiram aprender a ler, a escrever. Todo garoto sabe, escreve. Mas a gente era tudo uma coisa boêmia assim, foi na base da intuição e achava que esse caminho era completo. (12 de junho de 2006).
Na composição da banca de jurados nos festivais, os professores do conservatório eram chamados – o que identifica outro ponto de interseção.
Normalmente eram professores do conservatório, eram pessoas da sociedade dos músicos, era algum músico da banda; [...] tinha às vezes um jornalista no meio, alguém do teatro [...]. A Dalva Estela participou, se eu não me engano, eu acho que o Manuel Ferreira; eu fui de um júri que foi o da rádio Assumpção, a Mércia foi do júri da Assumpção. (Fausto Nilo, 6 de junho de 2006).
Sinalizando as interseções encontramos que Ricardo Bezerra chegou mesmo a estudar no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno.
[...] minha mãe me mandou estudar com a melhor professora de piano que tinha na cidade, que se chama Vanda Costa e nessa época eu comecei estudando no Conservatório [...] quer dizer, estudava com a Dona Vanda piano na casa dela ali na Pinto Madeira e ali no conservatório que depois se mudou pra Praça do Liceu, eu tinha aula de teoria com o Orlando Leite. Então eu posso dizer que eu tive uma iniciação musical de primeira ordem. Porque o Orlando Leite era aquele professor didático, ele era a própria didática musical, você entendia tudo daquilo ali. E a Dona Vanda era, além de ser uma excelente professora, era uma cabeça de primeira linha, uma pessoa de vanguarda, uma pessoa que te dava exercício do Fizerne, do Bartok que eram todos compositores que escreviam aqueles estudos pra piano, era tudo dissonante, tinha intervalos de meio-tom, eram umas coisas assim bem pra frente [...]. (6 de junho de 2006).
E sobre a composição de bancas de jurados em festivais, Ricardo Bezerra também lembra de pessoas ligadas ao Conservatório de Música Alberto Nepomuceno.
Dalva Estela, Orlando Leite, chamava Mércia Pinto, quando chamava Mércia Pinto era ótimo, que é uma pessoa de cabeça pra frente e tal, eu acho que o próprio Cláudio Pereira fazia parte, Francis Vale, tinha uma turma que girava em torno disso que eram jurados bacanas. (6 de junho de 2006).
Uma das principais referências do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno para os sujeitos era a aluna Mércia Pinto que também freqüentou o Diretório Acadêmico da Arquitetura – outro ponto de encontro que será analisado no tópico pontos de encontro. O fato é que existia uma relação com o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, ainda que não fosse com vínculos afetivos mais profundos. Mesmo sendo um grupo de músicos populares é importante notar que houve certo investimento no aprendizado musical.
Percebemos, contudo, que se mantém a distinção entre as pessoas de um sub-campo musical, formado pelo Conservatório de Música Alberto Nepomuceno com uma tradição erudita e com a forte presença do ensino de piano e outro sub-campo que se apropria do violão como principal instrumento musical confirmando a idéia de ser um grupo filiado a uma tradição boêmia e popular[38].
O piano e o violão são quase que exclusivamente os instrumentos citados nas declarações, a ressalva é de uma breve iniciação de Ednardo ao acordeom. Queremos lembrar também que a voz na qualidade de instrumento musical é de fundamental importância para a música de tradição popular[39]. Vejamos a distribuição desses três instrumentos entre os artistas:
1. violão: Ednardo, Fagner, Ricardo Bezerra, Rodger e Tânia;
2. piano: Ednardo, Ricardo Bezerra e Tânia (os nomes de Edson Távora, Mércia Pinto e Petrúcio Maia são relacionados a esse instrumento);
3. voz: Ednardo, Fagner, Rodger e Téti (posteriormente Fausto[40] resolve cantar e registrar suas músicas, Rodger sempre teve sua imagem mais associada ao compositor e violonista, contudo tem sua voz registrada desde o disco-marco –Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem –, até seu mais recente disco do ano 2004, passando por diversas participações em discos independentes e coletâneas produzidas no Ceará, e Tânia registrou suas composições com sua voz no disco coletivo Massafeira, lançado em 1980 e em um disco gravado em 2005).
Vamos trazer algumas declarações já registradas anteriormente, porém selecionando as que se referem ao violão e ao piano.
[...] eu tava muito no popular da esquina, tocar o violão, tirar música... Nelson Gonçalves, Francisco Alves, Orlando Silva. [...] comecei a estudar no professor Cirino [...] sai da aula, que era muito acadêmico, pra ver as pessoas fazerem coisas diferentes, no mesmo quarteirão, então eu larguei a aula por causa do quarteirão; comecei a namorar com as meninas e comecei a tocar violão com quem sabia pestanas. (Fagner, 19 de junho de 2006).
A fala de Fagner traduz uma relação atávica entre a música popular e o violão. A adaptação desse instrumento aos objetivos dos compositores e intérpretes da música popular e às circunstâncias a que esses músicos estavam ligados para a execução musical engendra uma heurística que remonta ao renascimento quando o violão “coexistiu com o alúde e a vihuela, permanecendo como instrumento essencialmente popular.” (ISAAC; MARTIN, 1985, p. 159). Nossa conclusão é clarificada ainda mais quando comparado com o piano, instrumento que já nasceu na aristocracia européia. A perpetuação dessas diferenças acompanhada por ambientes sociais distintos também podemos observar nas falas de Ricardo Bezerra e Tânia Cabral.
[...] na minha casa tinha piano, quando eu era novo minha mãe começou a aprender acordeom, meu pai era um fã ardoroso de música clássica, ele praticamente só escutava música erudita[41]; [...] minha mãe me mandou estudar com a melhor professora de piano que tinha na cidade, que se chama Vanda Costa e nessa época eu comecei estudando no Conservatório [...]. Aí fiquei violão e piano e tal, aquela coisa, tocava aquelas músicas no violão que as minhas irmãs aprendiam lá com a nossa prima [...] apesar do piano não ter ficado esquecido, mas o violão se sobressaiu porque era mais portátil, porque dava pra fazer serenata, porque você podia sair com o violão debaixo do braço, com o piano você não pode sair como o piano debaixo do braço, aí eu comecei a desenvolver o violão e aí veio a “bossa-nova” [...]. (Ricardo Bezerra, 6 de junho de 2006).
Ricardo Bezerra em sua declaração acima constituiu um sistema de relações entre o piano de sua casa, a opção de seu pai pela música erudita e suas aulas de piano no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno. E em seguida compara diretamente os dois instrumentos, sendo que o violão atende melhor aos objetivos por ele buscado. Essas mesmas referências são encontradas nas falas de Tânia Cabral: “eu devo ter começado com seis, sete anos com a D. Maria Helena a estudar piano. E era aquele estudo clássico mesmo de piano [...].” (18 de julho de 2006). A compositora confirma a ligação do piano com o estudo clássico, que seria mais bem identificado como erudito, e dá detalhes interessantes na sua relação com o violão:
[...] aquela fase, o violão aparecia como uma coisa boêmia, íntima, gostosa e tal e eu peguei o violão. Violão nunca toquei por partitura, ora se eu já não queria olhar pras partituras que eu aprendi imagine... nunca né... aí o violão me deu liberdade pra dizer com isso eu não tenho compromisso com nada a não ser o meu entendimento com ele [...]. (18 de julho de 2006).
E o violão é identificado dentro de outra rede que o associa à boemia, ao prazer e à liberdade. Podemos ampliar nossa interpretação e observar que Tânia nos aponta identificações entre o aprendizado tradicional do piano através das partituras com uma certa institucionalização musical e essa com o regime militar; em oposição ao aprendizado do violão popular que prescinde da leitura por partitura, logo, uma anti-institucionalização musical e a busca da liberdade que foi ceifada de muitos jovens das décadas de 60 e 70 pelas autoridades militares que golpearam a república e a democracia[42].
E encontramos nas falas de Augusto Pontes, Cláudio Pereira, Ednardo e Fausto Nilo essas mesmas associações entre o piano, o estudo erudito e o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno: “Teve um contato com o Conservatório. Inicialmente o Conservatório. O Petrúcio sabia tocar piano, Ricardo Bezerra também [...].” (Augusto Pontes, 19 de maio de 2006); "o Conservatório sempre é muito mais uma arte mais pro erudito, pro piano [...].” (Cláudio Pereira, 4 de junho de 2006); “Fiz curso de música clássica estudando piano [...].” (Ednardo, 11 de junho de 2006); “Era outro ponto que a gente se encontrava muito porque primeiro tinha os pianos [...].” (Fausto Nilo, 12 de junho de 2006).
É sempre importante lembrar que apesar de se distinguirem como sub-campos, com filiação a tradições diferentes e de tratamento com a linguagem musical, também, muito diferenciado, ainda assim, não são sub-campos isolados, antes estão inseridos em um campo maior, formado pela movimentação musical da cidade de Fortaleza e que mantém contato com uma certa freqüência, como confirmamos nas declarações dos sujeitos da pesquisa.
3.3 Música popular de fortaleza
É importante ressaltar que localmente a geração de artistas que inicia a produção e divulgação no âmbito da Universidade Federal do Ceará não necessitou concorrer com outros sujeitos. O ambiente universitário se constituía em um campo aberto para que encetassem toda a movimentação artística que desejassem. Contudo, os mesmos não se isolaram do cenário musical da cidade. Como já vimos com o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, identificamos também uma importante produção na cidade por parte de cantores e compositores ligados à produção musical popular da cidade, que embora se diferencie desses novos postulantes à carreira artística, mantiveram algumas interseções. Ainda que a interface fosse muito tênue, isso reforça o que estamos identificando como um sub-campo local que em um futuro próximo passaria a ser identificado pelo nome Pessoal do Ceará formado por esses artistas em análise e seus pares.
É por essa relativa unidade, muito mais presente em Fortaleza do que nos outros estados, para onde decidiram posteriormente encaminhar suas vidas profissionais, que identificamos concomitantemente semelhanças e distinções entre esses artistas e universitários e outras atividades musicais ocorridas em Fortaleza na segunda metade da década de 60 e início da década de 70.
Os artistas em questão iniciaram suas vidas acadêmicas na universidade justamente em meados da década de 60, quando tem início o período de exceção a que foi submetido o país, sofrendo os mesmos uma pressão que não foi vivida com a mesma intensidade pela geração anterior formada por cantores e compositores como Aíla Maria, Aleardo Freitas, Cleóbolo Maia, Fátima Sampaio, Humberto Teixeira, Lauro Maia, Lúcia Sampaio, Luiz Assunção, Mozar Brandão, os grupos Quatro azes e um coringa e Vocalistas tropicais que foram citados pelos entrevistados para esse trabalho.
Sobre esses artistas da geração anterior, Augusto Pontes é objetivo dizendo que existe “muito respeito e muita admiração. Por esses compositores, muito respeito e muita admiração.” (19 de maio de 2006). Cláudio Pereira, porém, diferencia sua geração da anterior justamente pela preocupação com as condições sociais e políticas do país: “[...] antes não tinha preocupação com o social. Já a música depois do golpe, mesmo com músicas românticas tinha um pano de fundo voltado pra liberdade; que é uma proposta que não tinha esse pessoal mais antigo.” (4 de junho de 2006).
Dedé Evangelista também os situa em um passado que emerge como lembrança.
[...] no Ceará tinha uma tradição de bons compositores, o Humberto Teixeira, o Lauro Maia, o Luiz Assunção esse pessoal todo, grandes compositores locais. Mas de outra geração [...]. Então tinha realmente essa lembrança. Tinha os grupos vocais, aqueles grandes grupos vocais que todo mundo conhecia e gostava: “Quatro azes e um coringa”, os “Vocalistas tropicais”, esse pessoal todo. (2 de junho de 2006).
As lembranças, embora possam parecer, não são irrelevantes, nesse caso elas demarcam momentos históricos diferentes, a forma como cada um as traz para o discurso nem sempre traduz a relevância que as mesmas têm na constituição do gosto musical. O sujeito ao afirmar que não faz parte de um grupo ou de uma geração, está implicitamente afirmando que faz parte de outro. O cultivo deliberado de relações com outro grupo, no caso aqui analisado os artistas ligados à música popular da cidade de Fortaleza em meados da década de sessenta, é que se desenvolve em graus diferenciados.
Fausto Nilo identifica um maior apreço por parte de Ednardo aos artistas que já estavam no cenário musical da cidade antes da chegada da sua geração:
[...] é muito explícito nele o propósito manifesto de demonstrar essas conexões da história dos compositores cearenses, acho que o Ednardo é o compositor que vai dar mais importância a isso na retórica e que explica o trabalho dele – que eu acho bacana também essa coisa aí – ele sempre foi muito ligado à cidade, à coisa do Lauro Maia, do Humberto Teixeira [...]. (12 de junho de 2006).
As declarações de Fausto Nilo são confirmadas por Ednardo que imprime um forte sentido às suas lembranças, retornando mais uma vez ao convívio familiar com os pais e acrescentando detalhes que enriquecem e nos oferecem um importante registro de nomes da música cearense:
Aíla Maria é uma pessoa maravilhosa, uma voz maravilhosa, inclusive Aíla Maria eu conheci no tempo do pastoril na Rádio Iracema, ela era a rainha do partido encarnado e a Fátima Sampaio era a rainha do partido azul [...]; eu também acompanhei toda essa coisa desses músicos, porque, desde muito novo eu ia pra todas essas festas, meu pai era festeiro pra caramba, minha mãe também, aí tinha umas festas no Comercial Clube, Ivanildo e seu conjunto, aí a gente ia lá; o Barbosa, baterista, fazia um show; o Saci no contra-baixo, contra-baixo de pau, o cara cavalgava o contra-baixo mesmo, literalmente, ele montava em cima, era um show a parte [...]; eu vi e participei, assim, assistindo, na Ceará Rádio Clube, a orquestra de Cleóbolo Maia [...]. Lauro Maia [...], meu pai cantava muitas músicas dele, me embalava com as músicas de Lauro Maia, Luiz Assunção [...], Mozar Brandão, fez o arranjo de “Beira-Mar” para o festival de 1970 lá em Recife [...]. (11 de junho de 2006).
Ednardo identifica claramente convergências e associa com muita fluência sua relação com o cenário musical fortalezense desde sua infância até o festival de 1970 em Recife. A convivência amistosa e mesmo prazerosa, coberta de admiração e respeito entre as duas gerações não desfaz, contudo, a autonomia identificada em outras declarações que demarcam mais objetivamente sub-campos distintos.
Fagner reconhece a relevância da música dos seus antecessores pondo em relevo o nome de Aíla Maria, uma das intérpretes mais conhecidas na época: “a Aíla a gente via, porque era na televisão, era uma pessoa muito famosa aqui [...]”, e também confirma a música anterior como referência, mas aponta para uma certa independência em relação à sua produção e de seus pares: “Como referência, assim, sempre tem. Não a coisa de influenciar no que a gente tava fazendo, não. Mas como referência de música.” (19 de junho de 2006).
Nas declarações de Fausto Nilo ele explicita até mesmo uma forma de embate estético, já que sua geração vinha com propostas de mudanças, cantando, tocando e compondo a partir de outras referências.
[...] embora [...] o Rodger conhecesse tudo, fez uma música chamada “Baião” que é o “Bye bye baião” aí se remete à Humberto Teixeira, mas o Rodger, ele tem um componente de “bossa-nova” que envenena muito essa tradução e transforma noutra coisa. [...] a gente tinha respeito à Aíla, mas também não era algo que a gente fosse lá pra beber, porque a gente era o questionamento deles também [...]. Nós íamos com outras idéias, colocando outras formas, sem desrespeitar o pessoal, mas não era pra continuá-los, era até um pouco desbancar aquelas hipóteses que estavam vigendo ali do velho rádio. (12 de junho de 2006).
Ricardo Bezerra revela uma percepção semelhante à de Fausto Nilo no que tange a referências musicais outras, acrescentando a Tropicália entre elas, e ressalta também o fato de alguns dos cantores e compositores que os antecederam terem ido desenvolver suas carreiras no Rio de Janeiro.
[...] o que vinha antes da gente, tinha primeiro acontecido no meu entender a muito tempo atrás, um bocado de tempo atrás, Luiz Assunção, Lauro Maia essa coisa toda, o Humberto Teixeira. Mas todo esse pessoal foi pro Rio. Em termos de Ceará, movimento local, nós fomos meios desbravadores, considerando que o que tinha acontecido antes já tinha se passado gerações e esse pessoal tinha ido embora pro Rio, então [...] eu não posso dizer que nós temos influência direta de Luiz Assunção, Lauro Maia, Humberto Teixeira. Porque nós tínhamos influência dos baianos, das coisas que estavam acontecendo no Rio de Janeiro, aquela coisa da música de protesto, “Tropicália”, muito da “Tropicália”. (6 de junho de 2006).
Já que parte da geração anterior foi para o Rio de Janeiro e desse mesmo Estado também vieram influências que não a dos cearenses que para lá foram, é porque também naquele Estado se manteve essa distinção entre uma tradição musical brasileira e os então jovens artistas ligados às novas idéias que tinham como centro irradiador as universidades.
Fagner declara à revista “Entrevista” (1999, p. 33) do curso de Comunicação da UFC:
[...] na época, na década de 70, o público classe A era o público universitário. Inclusive, eu fui descoberto no circuito universitário em São Paulo e público intelectual era o público universitário. A universidade tinha força, não sei hoje como é que tá, mas existia uma coisa muito forte na universidade. E você ser público A, era justamente ter identificação com a universidade.
A declaração de Fagner reflete bem o que acontecia de forma semelhante em outros estados, para os quais parte dos sujeitos desse trabalho também se direcionaram e onde, ainda relacionados ao público universitário, desenvolveram o início de suas carreiras fora do Ceará.
No Ceará e mais fortemente na cidade de Fortaleza se desenvolvia uma nova gramática musical que não era a continuidade do que estava estabelecido no cenário local no que se refere à música popular.
Cruzando as informações sobre o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno e as declarações feitas acima, estamos reconstituindo parte importante do campo musical da cidade de Fortaleza, onde identificamos sub-campos que se diferenciam e explicam algumas convergências e outras diferenciações, seja pelo fator temporal, no caso de gerações diferentes, seja por filiações a tradições diversas, como o erudito e o popular.
A identificação desses campos e sub-campos não é rígida nem taxativa, portanto não exaure as diversas possibilidades de análises. Nosso intento é exercitar a análise global sem que a mesma anule as características dos casos específicos, e investigar as trajetórias individuais sem nos prendermos demasiadamente a análises de unidades parciais sob pena de obliterar o contexto em que as mesmas estão circunscritas.
Dessa forma estamos identificando uma certa unidade entre os sujeitos que, ainda que mantendo suas individualidades, também têm outras referências nacionais em comum, como verificaremos em seguida com a música brasileira popular chegando aos ouvidos cearenses através do rádio.
Nosso esforço é para seguir as trajetórias dos sujeitos que submersos na multirreferencialidade social escolhem ou são levados a escolher determinados referenciais estéticos. Ainda que o poder de escolha autônomo do indivíduo jamais desapareça, ele se define dentro de um campo que foge à vontade exclusivamente individual. Por exemplo, o rádio como meio formador do gosto musical oferece uma seleção musical, que faz jus ao próprio termo “seleção”, como esclarece Aires (2006, p. 115) colocando a seguinte questão: “Nos anos quarenta e cinqüenta, como não pensar nos programas de rádio do tempo da Rádio Nacional senão, como uma forma de selecionar cantores que eram testados a partir do critério da extensão de voz?”
Foram esses cantores que chegaram aos anos 40 e 50 e encantaram essa geração ainda na infância através da qualidade vocal, mas também por meio do encantamento tecnológico das radiadoras e do eletrodoméstico que marcou sensivelmente suas vidas: o aparelho radiofônico.
3.4 Música brasileira popular e rádio
Estamos utilizando os nomes música popular de Fortaleza e música brasileira popular mantendo como referência a própria visão dos sujeitos desse trabalho. Em relação à palavra “popular” podemos encontrar alguma contradição, já que o nível de sofisticação a que foi levada algumas peças musicais se afasta do que é “popular” no que se refere à uma criação espontânea. Como vimos, na iniciação musical de Ednardo, Ricardo Bezerra e Tânia Cabral os mesmos tiveram acesso à tradição erudita da música. Rodger, ainda que de forma autodidata, investiu nos estudos de harmonia, encantado que era pela bossa-nova[43]. Contudo, como já analisamos na relação com o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, a música desse grupo de artistas não se filia à tradição erudita, ainda que não se isole da mesma.
A classificação nunca dá conta da realidade, essa é sempre mais rica e nosso esforço investigativo, embora necessite fazer essas separações, sempre procurará manter a capacidade de olhar os fenômenos específicos circunscritos na totalidade e, quando necessário for, lembraremos que ao estudarmos a formação humana, ainda que em aspectos muito específicos, essa é sempre multirreferencial.
As ressalvas feitas acima também se aplicam às separações feitas entre as expressões “popular de Fortaleza” e “brasileira popular”. É obvio que a música feita em Fortaleza é brasileira, contudo nem toda a música fortalezense circula nacionalmente e se mantém mais ligada à sua origem. Compreenderemos esse aspecto justamente verificando a vinculação da música popular com o rádio que ganha uma grande circulação nacional através dessa tecnologia.
Para maior clareza, vamos lembrar o nome dos artistas citados para a análise da música popular de Fortaleza e, da mesma forma que fizemos com esse tópico, buscar nas próprias entrevistas o nome dos artistas do que estamos incluindo na música brasileira popular. Associado à música popular de Fortaleza encontramos os nomes de Aíla Maria, Aleardo Freitas, Cleóbolo Maia, Fátima Sampaio, Humberto Teixeira, Lauro Maia, Lúcia Sampaio, Luiz Assunção, Mozar Brandão, os grupos Quatro azes e um coringa e dos Vocalistas tropicais. Relacionado a esse tópico, música brasileira popular, encontramos: Adelino Moreira, Ângela Maria, Anísio Silva, Augusto Calheiros, Carlos Galhardo, Carmem Miranda, Cauby Peixoto, Dalva de Oliveira, Emilinha Borba, Francisco Alves, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Marlene, Nelson Gonçalves, Orlando Silva e Vicente Celestino.
O que nos interessa aqui é verificar a relação dos sujeitos dessa pesquisa com a música que circulava nacionalmente.
Inicialmente já podemos observar que a lembrança trazida é principalmente de intérpretes e não de compositores; ou seja, o registro auditivo dessas vozes é a referência mais forte. A música vocal tinha grande influência para os que se interessavam por música popular e essa ganhava grande força sobre a formação do gosto musical através do rádio. Tanto está ligada à formação que Fagner remete a sua iniciação dizendo que “foi um iniciar populesco total de rádio e de cantores que aparecia muito [...].” (19 de junho de 2006).
É interessante observarmos que a desobrigação no sentido formal do aprendizado é sempre lembrada como um aliado da própria aprendizagem; ou seja, a força educativa do rádio é justamente em se apresentar como um meio que não está ligada ao aprendizado.
Cedo comecei a freqüentar a rádio, depois teatro e fui desenvolvendo um gosto por essas coisas, [...] ouvi muito; humoristas e música de maneira muito natural, espontânea, sem nenhuma obrigação, seriedade de ouvir [...] eu freqüentava rádio e quermesses e parque de diversão, sobretudo os programas de rádio que eram animados com perguntas para o auditório, montagens, esquetes e fui desenvolvendo esse gosto. (Augusto Pontes, 19 de maio de 2006).
O rádio na qualidade de uma tecnologia da indústria cultural sempre utilizou justamente a estratégia de parecer desinteressada do ponto de vista pedagógico e mercadológico. A formação do gosto surge para os ouvintes como algo natural e não intencionalmente constituído. Quanto menos interessado o rádio se apresenta maior é sua eficácia mercadológica. Essa é uma estratégia que não tem seu nascedouro nem na modernidade nem propriamente com os meios de comunicação, muito menos com o rádio. Ampliando essa análise podemos perceber que muitas ações políticas com repercussões importantes na sociedade se fundamentam nessa “naturalidade”. Por exemplo, a discriminação racial em empresas é tratada de forma natural: se para ocupar um cargo vago existem dois homens – um branco e um negro – com a mesma qualificação, geralmente ou “normalmente” convoca-se o branco; o mesmo vale para homem e mulher. Mas a utilização desse expediente remonta a outras épocas da nossa história.
Marilena Chauí (1992 apud NOVAES, 1992, p. 362), analisando a figura do tirano e os diversos conceitos que ganhou em diferentes épocas, traz a concepção de Hegel que identifica o surgimento da esfera pública através
[...] da força genial de um herói fundador, do grande homem que “possui dentro de si algo que leva os demais a chamá-lo de chefe, a obedecê-lo mesmo contra suas próprias vontades”. O Estado nasce da boa tirania. Fundador heróico, o bom tirano é aquele que faz vir para a comunidade, primeiro, o sentimento e, depois, a consciência da lei que, ao ser interiorizada como obediência voluntária, encontra a vontade universal e apaga a particularidade da vontade tirânica que, no início, a encarnava.
A lógica descrita acima é a que é usada com força ainda maior pelos meios de comunicação. A música tocada repetidamente nas rádios torna-se natural. Ouvir rádio em meio à família ou entre amigos e com extremo prazer se naturaliza no cotidiano e oculta vultosos investimentos mercadológicos.
Continuando com Chauí (op. cit., p, 371):
O simbólico deve ocultar a origem do poder para que este possa ser aceito e exercido, cabendo à imaginação realizar essa passagem do fato ao valor, da força ao poder, da violência ao legal, pois é próprio da imaginação esconder a origem das coisas.
É nossa intenção aqui desnaturalizar o que socialmente tornou-se natural. O gosto pelas músicas do rádio desenvolvidas pelos sujeitos não foge à lógica mercadológica que, aliás, será utilizada pelos mesmos na circulação nacional de suas músicas. Ao falar sobre sua produção discográfica em entrevista aos alunos do Curso de Comunicação Social da UFC, Fagner declara:
Na minha profissão então, que há diferença do que você compõe, da música, da sensibilidade, pra um mercado, pra coisa da selva de pedra da competição, queira ou não queira, você é um produto, você está ali competindo dentro da área e eu há muito tempo venho fazendo discos que atingem a massa e que estão dentro do mercado. (REVISTA ENTREVISTA, 1999, p. 33).
Investir consciente e deliberadamente rumo à aceitação da lógica da indústria cultural não se constitui por si algo bom ou mau, não se trata de fazer um julgamento moral. Podemos, porém, perceber que existem intenções, interesses, competições que por vezes são ocultados e que a declaração acima nos ajuda a esclarecer.
O início da rádio no Brasil em 1922 está associado à urbanização do Rio de Janeiro, então capital brasileira, período que o sanitarista Oswald Cruz envida esforços para civilizá-la. Nesse momento histórico os bondes, automóveis e ônibus circulavam livremente facilitando a vida dos cariocas; a moda internacional de Berlim e Paris se multiplica entre arquitetos, modistas, chapeleiros e alfaiates. Contudo “[...] é fora de dúvida que a implantação de uma nova embalagem cosmopolita para o Distrito Federal visava não apenas a melhoria das condições de vida dos cariocas. Por trás da reforma urbana e sanitária do Rio existiam razões políticas e econômicas.” (SAROLDI; MOREIRA, 2005, p. 18-19).
Os interesses estiveram sempre associados ao universo radiofônico e os artistas, cantores, compositores, maestros, produtores encontraram no rádio a possibilidade de se consagrarem, colocando em circulação suas obras e fazendo de seus nomes marcas com capacidade de atingir a população de forma maciça. A clareza de Fagner é surpreendente quando comparamos suas palavras às de Lourival Fontes[44] em 20 de fevereiro de 1936 em entrevista ao redator Jayme Távora da Voz do Rádio[45]. Vejamos o que diz Fontes.
Não podemos desestimar a obra de propaganda e de cultura realizada pelo rádio e, principalmente, a sua ação extra-escolar; basta dizer que o rádio chega até onde não chegam a escola e a imprensa, isto é, aos pontos mais longínquos do país e, até, à compreensão do analfabeto. (Ibidem, 2005, p. 18-19).
E Fagner revela sua ampla visão de divulgação implementando estratégias de escolha entre um repertório do seu gosto e do público em geral.
Eu vou driblando e gravando aquilo exatamente que eu sinto na hora, como eu gosto, como eu vejo, que tipo de música. Então, eu não tenho nenhum preconceito, as pessoas é que têm preconceito no Brasil para a música popular. Existe um preconceito enorme da crítica porque eles querem impingir um gosto. O público não, a gente é um país subdesenvolvido, analfabeto, carente e as pessoas não entendem muito as coisas e a música popular é quem atinge esse povo. E eu tenho uma ligação direta também com a massa no Brasil e faço questão de cantar pra esse povo. (REVISTA ENTREVISTA, 1999, p. 30).
As duas declarações acima coincidem em relação à comunicação com a massa e no relevo posto à capacidade de atingir os analfabetos. Não é por acaso que Fagner chega a dirigir o selo Epic dentro da gravadora multinacional CBS, trazendo para o mercado fonográfico nomes que se consagraram como Amelinha, Zé Ramalho, Robertinho de Recife e vários outros que não chegaram a cristalizar seus nomes na mídia nacional como Banda Santarém, Cirino, Manassés, Petrúcio Maia, Ricardo Bezerra, Téti, entre outros.
É importe que possamos melhor investigar as palavras de Fagner quando diz do seu próprio gosto, da forma como vê a música e de sua relação com o público. A declaração acima nos oferece a oportunidade de perceber como o próprio sujeito expressa seu gosto como se fosse fruto de uma vontade natural, e nosso estudo aqui vem mostrando que esse mesmo gosto está inserido muito antes em um desenvolvimento social diversificado. Se os críticos querem impingir um gosto aos artistas, a indústria cultural não só quer como de fato impõe um repertório musical que forjando gostos musicais no povo forma a massa de consumidores de discos. As gravadoras não só sabem disso como fomentam esse mercado radiofônico.
Ainda em relação aos primórdios da rádio brasileira e os interesses da indústria fonográfica encontramos que
A quinta emissora carioca começou a operar em 1930, sediada à rua Sacadura Cabral nº 43, 5º andar. A PRA-X, Rádio Philips, representava os interesses da empresa holandesa fabricante de discos, receptores e transmissores radiofônicos, disposta a entrar no mercado sul-americano. Idênticas razões motivaram a norte-americana RCA Victor – conhecida pela marca “do cachorrinho” – a fundar a Rádio Transmissora Brasileira em 1936. A estação ocupou o 4º andar do prédio da empresa, na rua do Mercado nº 22, também na região central, recrutando, entre outros, os talentos de Almirante, do maestro Radamés Gnatalli e do locutor Saint-Clair Lopes. (SAROLDI; MOREIRA, 2005, p. 22).
O crescimento radiofônico vinha então reunindo as condições ideais para o desenvolvimento da cultura brasileira nos moldes industriais e, como vimos acima, os talentos artísticos entram nesse jogo e ampliam sua área de atuação. O fomento de uma cultura nacional também atende a interesses políticos que necessitam trazer unidade a um país de tão grande extensão territorial como é o Brasil formando assim uma parceria poderosa entre os objetivos políticos e os empresariais.
[...] o interesse dos empresários da mídia impressa na concessão de um canal de ondas médias mostra a importância dos decretos sobre radiodifusão baixados por Getúlio Vargas ao chegar ao poder. O primeiro, de 1931, regulamentava o funcionamento técnico das emissoras concedidas; o segundo, de 1932; liberava a veiculação de publicidade pelas ondas hertzianas e instituía o rádio comercial. (SAROLDI; MOREIRA, 2005, p. 22-23).
Em 1935 os Diários Associados recebem no Rio de Janeiro seu prefixo, os mesmos que futuramente promoveriam um dos mais importantes festivais da época, o I Festival Nordestino da Música Popular, em 1969, com relevante participação de compositores e intérpretes cearenses.
Os grandes cantores do rádio que entraram na formação dos sujeitos dessa pesquisa também competiram nesse espaço midiático para fazer circular suas músicas. Portanto, esses artistas e suas interpretações musicais por mais que se apresentem de forma espontânea estão atreladas a interesses comerciais que fazem circular vultosas quantias econômicas.
Contudo os ouvintes nem sempre sabem que fazem parte de um grande jogo comercial. Como veremos nas declarações, os sujeitos trazem em suas memórias momentos mágicos das suas formações musicais via rádio.
[...] lembro de depois já quando nós mudamos pra Sobral, a gente ia passar muitas férias lá e o ambiente da cidade ainda era aquele, tinha um belo serviço de alto-falante, a luz começava às 6 e terminava às 10, mas o alto-falante eu me lembro de muitas músicas que eu ouvi, música de Luiz Gonzaga, de Jackson do Pandeiro, tinha música do Orlando Silva essa música tradicional do Brasil e música regional, sobretudo, Luiz Gonzaga; [...] a cidade inteira era sonorizada mantida por causa do serviço de radiadora de modo que nós não tínhamos rádio em casa. Quando eu saía pra rua, por exemplo, ficava ouvindo a rádio nos lugares mais distantes da cidade [...]. (Belchior, 20 de junho de 2006).
Os artistas citados por Belchior também sofreram o embate com a indústria cultural. Luiz Gonzaga, por exemplo, enfrentou muitas dificuldades e empreendeu um esforço extraordinário para firmar nacionalmente o seu nome. Essa luta por espaços no mercado cultural são relevantes para entendermos que a música que consegue chegar ao grande público consumidor não surge espontaneamente, emergem em meio a grandes interesses. O que não significa que não tragam elementos importantes para a compreensão da formação musical, pelo contrário temos que olhar para o jogo mercadológico e verificar os espaços ocupados pelos agentes e a parcela de poder que cada um consegue amealhar.
Nesse sentido, nos filiamos ao pensamento da professora Elba Braga Ramalho (2000[46]): “Apesar de ter se tornado um produto industrial, a música popular tem um espaço importante no mundo — nós não podemos deixar de atestar a importância que ela tem para promover reflexões e revelar as características próprias de uma cultura.”
O rádio manteve sobre a população brasileira um verdadeiro fascínio, os próprios equipamentos, quando chegavam às casas tornavam-se objetos de fetiche entre os familiares.
[...] o rádio foi o primeiro eletrodoméstico, eu me lembro de um rádio grande que meu pai conseguiu pra casa inteira como pagamento de uma dívida que alguém tinha feito à ele e eu me lembro de ter ido com ele buscar esse rádio do outro lado do rio. Foi um evento histórico importante e era a primeira audição de rádio, a família toda reunida. E eu me lembro do cuidado e do carinho com que eu me acerquei desse rádio, ouvia todos os programas que tinha música. Nós trouxemos esse rádio de Sobral aqui pra Fortaleza. [...] então a minha formação musical espontânea foi daí. Eu sei muitas músicas que eu ouvi nesse período. (Belchior, 20 de junho de 2006).
O rádio constituiu parte importante da formação do gosto musical desses que se encontrariam mais tarde no ambiente universitário. Mais uma vez confirmamos que os períodos mais ligados à infância tem um forte poder constituidor de estruturas de percepção. No caso, o rádio na qualidade de meio estruturante de percepções auditivas formadoras de um habitus que se apresenta nas relações entre os agentes como afinidades musicais.
Ednardo também remete sua experiência radiofônica à sua infância:
[...] desde os cinco anos meus pais notaram que eu tinha interesse muito grande por música. Escutava por horas as músicas no rádio, sempre pedia para me levarem aos programas de auditório da Ceará Rádio Clube PRE-9, dos programas musicais e pastoris da Rádio Iracema. Assisti ao vivo grandes orquestras e cantores daquele período [...]. (10 de junho de 2006).
O estado de encantamento que percebemos nas palavras de Belchior também se traduz nas de Ednardo:
[...] o meu pai tinha naquele tempo um radiozinho que pegava até conversa de vizinho [...] ondas médias, tropicais não sei quê, tudo, nessa época eu escutava as músicas que tocavam no Japão, na China, nos Estados Unidos ao vivo, cara, o que tava acontecendo lá através desse radiozinho [...]. Ele tinha aquele chamado olho mágico, sabe, então você conseguia sintonizar, aí tinha o olho que ficava todo verde e abria um leque meio preto como se fosse sintonizar [...] era uma coisa maravilhosa, isso chamava olho mágico, eu e meus irmãos nós chamávamos olho mágico, eu ficava horas, horas lá, a ponto do pai “Meu filho tá bom, vá dormir, vá dormir amanhã tem escola”, e eu lá escutando rádio em todos os lugares do mundo. (11 de junho de 2006).
Fausto Nilo também descreve em sua lembrança o mesmo mágico envolvimento, trazendo riqueza de detalhes do serviço de alto-falante chamado “a voz de cristal”. A própria metáfora utilizada no nome do serviço evoca esse encantamento, algo que transcende, uma voz que está acima da condição humana uma voz de cristal.
Tinha uma coisa muito importante que influiu muito, estou falando da parte musical, que era o serviço de alto-falante, “a voz de cristal” que pode ser até uma coisa de criança, que a gente dá uma dimensão muito grande, mas eu acho que não, estou comprovando que era verdade, esse alto-falante era especial, não só a qualidade do equipamento que esse cara tinha, como ele tinha quatro torres com alto-falante na cidade, em lugares estratégicos e tinha quatro programas por dia, tinha um de manhã, ia de sete até nove horas, tinha um ao meio dia, ia até duas horas da tarde, tinha um às quatro horas da tarde até seis horas mais ou menos e tinha depois de oito horas da noite até dez horas. Essa programação dele era feita com base numa coleção que hoje está reduzida, eu acho a seis ou sete mil discos, mas eu tenho impressão que ele chegou a ter dez mil discos [...]. (12 de junho de 2006).
Vejamos que mesmo a fundamentação do porque a “voz de cristal” era realmente especial, não dissocia o estado mágico que o serviço causou na então criança Fausto Nilo. O registro em sua memória mantém uma aura mágica. Os artistas que lá tocaram e entraram para a memória afetiva de Fausto e de seus conterrâneos, de forma quase mágica, podem nos fazer esquecer de toda a organização industrial que vinha se formando no sentido da urbanização das cidades e dos interesses políticos e econômicos.
É como se fosse um truque, aqueles seis, sete ou dez mil discos fazem parte de um acervo todo especial que presenteia a população com belas canções. Sem entrar no mérito do que é ou não é belo, o fato é que esses discos não foram produzidos “ingenuamente” de forma desinteressada. Necessitamos empreender um esforço para entrarmos no universo do entrevistado e depois fazer o caminho de volta, descolando-nos de suas impressões afetivas. Dessa forma é possível perceber as intenções em formar um público consumidor, que passa a gostar daquelas músicas de forma que se mantenham duradouramente em suas lembranças.
[...] eu tive essa sorte e privilégio. É tanto que pessoas da minha cidade, da minha idade, conhecem músicas antigas igual a mim, qualquer pessoa – a não ser que não goste de música – por causa disso; e como não havia esse negócio do sucesso da maneira que é hoje, aquelas músicas ficavam muito tempo sendo repetidas, foram muitas turmas que nasciam e iam ouvindo essas músicas; então isso me permitiu conhecer, posso dizer, quase completamente o repertório do Orlando Silva, do Carlos Galhardo, do Vicente Celestino, do Nelson Gonçalves, quer dizer, sem pesquisa, é uma coisa vivida, vivida mesmo, até o Adelino Moreira, Nelson Gonçalves naquele período do Adelino Moreira dos anos 50 até parte dos 60. (Fausto Nilo, 12 de junho de 2006).
Essa coisa “vivida mesmo” a que Fausto se refere atende justamente às intenções mercadológicas. Não que as mesmas não tenham sido vividas mesmo, elas foram e por isso atingiram seus objetivos. Os artistas veiculados na “a voz de cristal” se consagraram e tornaram-se partes das vidas de Fausto Nilo e seus conterrâneos de Quixeramobim. O fato de não ter empreendido um esforço de pesquisa sobre o repertório que permeou sua infância reforça ainda mais esse aspecto naturalizado da formação do gosto musical do futuro letrista e arquiteto Fausto Nilo.
Nunca é demais lembrar que não se trata de uma anulação do sujeito, senão todos seriam exatamente iguais e as letras de Fausto Nilo não diferenciaria das de seus pares no início de carreira artística, Augusto Pontes, Brandão e Yeda Estergilda, por exemplo. Estamos antes demonstrando que a convergência e compartilhamento dos mesmos em espaços e com interesses artísticos semelhantes não aconteceram por acaso. Entre as diversas possibilidades existentes nas trajetórias individuais existem características formadoras que afinam os gostos, os desejos e promovem encontros que deixam todos como peixes dentro d’água ou como índios que encontram sua tribo. Todos se entendem naturalmente, falam a mesma língua e tendem a gostar de coisas semelhantes.
Os artistas que gravaram e que tiveram seus discos tocados no serviço de alto-falante “a voz de cristal” só conseguiram levar sua música à Quixeramobim, à Sobral, à Fortaleza e aos mais diversos espaços do território nacional porque competiram e desenvolveram estratégias para se inserirem no mercado musical brasileiro. O rádio era uma importante instância consagradora e ter suas músicas circulando através desse veículo era um anseio comum aos que queriam figurar no cenário musical brasileiro.
O próprio Fausto Nilo ao falar dos momentos mais importantes das trajetórias desses que ficaram conhecidos como Pessoal do Ceará declara que “o acontecimento final mais importante foi quando eles conseguiram assinar com gravadoras, gravar seus discos etc; e depois importante mesmo foi quando nossas músicas chegaram no rádio, como sucesso popular, que foi uma luta muito grande, muito difícil [...].” (12 de junho de 2006).
Tânia Cabral tem sua própria história familiar ligada ao rádio. Seu pai, José Cabral de Araújo, foi um dos pioneiros do rádio no Ceará, trabalhou na PRE-9 e trouxe o irmão mais novo que ficou mais conhecido na radiofonia cearense, o Paulo Cabral. Tânia nos informa objetivamente sobre a força que tinha o rádio na sua infância: “naquele tempo não existia televisão, então o rádio era uma coisa muito poderosa.”; e completa apontando a importância simbólica dessa atividade de seu pai: “as pessoas se ligavam muito naquela que tinha sido a atividade pública dele.” (18 de julho de 2006).
E Téti nos transporta à sua cidade natal e ao ambiente familiar:
Lá em Quixadá, depois do jantar, boa parte da família ia sentar no oitão da nossa casa para escutar as mais variadas músicas em ritmo e estilo, através do serviço de alto-falante “Solon Magalhães”. Nós ouvíamos de Vicente Celestino a Luiz Gonzaga, passando por Orlando Silva, Chico Alves, Augusto Calheiros, Dalva de Oliveira, Anísio Silva, Emilinha Borba, Jackson do Pandeiro... Essas músicas eram ouvidas diariamente, ficavam naturalmente gravadas em nossas memórias. Além da radiadora, depois que entrávamos para dormir, papai e minha irmã Ritinha iam ouvir as notícias e músicas do mundo, através das ondas sonoras do nosso rádio movido a bateria. Era através desse “miraculoso aparelho” que a Rita ficava a par das fofocas do amor turbulento de Dalva de Oliveira e Erivelto Martins, do acidente de carro que matou Francisco Alves [...]. (27 de novembro de 2006).
A cada tópico vamos sedimentando a idéia de uma formação híbrida do gosto musical dos sujeitos dessa pesquisa cujas trajetórias apresentam traços comuns. As vivências familiares, escolares, as formas de acesso à linguagem musical e os contatos com a música através do rádio se entrelaçam em uma formação multirrefencial. Aspectos comuns das trajetórias são traços nem sempre visíveis que criam certa empatia entre os sujeitos. Ao se encontrarem na universidade as coincidências formativas funcionam como um ímã invisível capaz de criar tal identificação que naturalmente as parcerias se formam construindo um sub-campo musical. Esse se define ainda mais quando ao se tocar com outros sub-campos – como aquele formado por músicos ligados à tradição erudita, mormente oriundos do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno; ou ainda outro sub-campo que apontamos, formado por compositores e intérpretes ligados à música popular de Fortaleza, reafirma sua relativa autonomia frente aos mesmos.
CAPÍTULO 4
CONSOLIDAÇÃO DE UM SUB-CAMPO MUSICAL
[...] acontecem inspirações, acontecem ocasiões;
a ocasião faz o artista, faz o ladrão e faz o artista.
(Augusto Pontes)
4.1 Agremiações: cpc, cactus e gruta
As trajetórias dos sujeitos dessa pesquisa convergem à Universidade Federal do Ceará em um contexto político crítico, em meio aos desmandos militares. Essa realidade já vinha sendo vivenciada no 2º grau científico, que atualmente se chama ensino médio e se aliava às vivências artísticas que também já vinham se desenvolvendo. O movimento estudantil tinha grande força política advinda do poder de organização em torno das entidades estudantis.
O espaço da universidade reunia as condições necessárias para o desenvolvimento da obra desse grupo de artistas e intelectuais. O acesso ao conhecimento, a efervescência política, a busca da profissionalização, a necessidade impulsionadora para definir um lugar no mundo revertida em uma grande força de vontade para escolher um caminho e ao mesmo tempo alimentar os sonhos de realização de liberdade que naquele momento encontrava-se cerceada pelo regime militar. Outro aspecto importante é que a universidade era, então, uma instituição muito nova, um espaço livre, com certa autonomia e à disposição para os agentes fomentarem pioneiramente suas idéias, seus sonhos, exercitando e experimentando a iniciação política e artística.
É nesse ambiente que surgem, na esteira do CPC, o Cactus e o GRUTA, mesclando teatro, música e poesia. “O Centro Popular de Cultura (CPC) surgiu em dezembro de 1961, no Rio de Janeiro. Foram responsáveis pela sua criação Oduvaldo Vianna Filho, Leon Hirzman e Carlos Estevam Martins.” (RAMALHO, 2002, p. 114).
Toda essa efervescência não surgiu de uma hora pra outra, ela veio de um grande caldo cultural forjado no otimismo brasileiro que ganhou incentivo ainda nos anos de Juscelino Kubitschek que para Augusto Pontes é “[...] a alvorada do Brasil, a criatividade se exercendo, consentida e louvada em todos os campos: música, cinema, arquitetura, política, parlamentos, jornalismos, literatura, poesia, tudo; era um alvorecer.” (19 de maio de 2006).
Rodger acrescenta: “E os esportes! Maria Ester Bueno, Eder Jofre, a seleção de basquete e a canarinha campeã em 58 e bi em 62.” (6 de novembro de 2006).
O entusiasmo nacional estimulou a vanguarda artística que podemos ilustrar com o cinema novo, a bossa-nova e a construção de Brasília. Esse desenvolvimento cultural aquecido no período JK resiste nos anos 60 às crises presidenciais de Jânio Quadros e João Gullar e nasce em dezembro de 1961 junto à União Nacional dos Estudantes (UNE) o Centro Popular de Cultura (CPC) se disseminando em várias universidades brasileiras.
Francis Vale nos empresta sua memória:
[...] os anos JK – esse período da segunda metade da década de 50 – foi nesse período em que diversos setores da cultura e das artes brasileiras adquiriram um maior desenvolvimento, é um momento de grande euforia nacional onde a auto-estima do país tava em alta; [...] construção de Brasília, o desenvolvimento, indústria automobilística, Brasil campeão do mundo [...] aí temos toda uma revolução na poesia, nas artes plásticas, o Teatro de Arena, o cinema novo começa a se articular, a “bossa-nova” [...]. (1º de maio de 2006).
O CPC criou a UNE-volante que percorreu todas as capitais com o objetivo de manter contato com os movimentos estudantis, operários e do campo. Cláudio Pereira nos informa que “a UNE-volante era um movimento que teve em todo o Brasil levando shows, levando jograis, levando recitais, exposições de arte tudo enfocando a parte política.” (4 de junho de 2006).
O CPC gerou um movimento cultural engajado nas questões políticas ganhado adesão de importantes artistas brasileiros como Carlos Lyra, Ferreira Gullar, Gianfrancesco Guarnieri, Augusto Boal entre outros. Gozando de autonomia administrativa e financeira o CPC se expandiu e
Assim como o CPC da UNE iria dar margem a uma nova concepção de arte e cultura nos primeiros anos do pós-golpe, da mesma forma o CPC do Ceará se transmudou no Cactus, no GRUTA e iria inspirar as atividades artístico-culturais dos diretórios acadêmicos, em especial o da Arquitetura. (RAMALHO, 2002, p. 118).
O grupo Cactus tem esse nome justamente como símbolo de resistência às condições mais adversas possíveis que caracteriza a planta da caatinga, assim como as ações estudantis frente ao poder instituído. Esse grupo unia música e poesia ao teatro. Rodger citou como participantes as seguintes pessoas: “Petrúcio Salvino Mesquita Maia, Iracema Melo, Olga Paiva, Nonato Freire, Renato Serra e este locutor que vos fala, que entrou para o grupo substituindo Sérgio Costa e uns dois anos depois foi substituído por Wilson Cirino.” (12 de fevereiro de 2006).
Embora a posição política contra a ditadura fosse unânime alguns não queriam ficar vinculados tão fortemente a essas questões e de certa forma o grupo cinde, ainda que mantendo contato, uns se afastam e outros se mantêm mais diretamente ligados às movimentações políticas.
[...] o Pereira fica com o negócio do GRUTA, ele vai organizar o GRUTA, que nós, eu, o Augusto e o Rodger todos participamos no início, mas depois divergimos na parte dos shows e criamos nosso teatro lá, nossa reunião musical, um pouco divergente do Cláudio. (12 de junho de 2006).
O GRUTA é o Grupo Universitário de Teatro e Arte. Idealizado por Cláudio Pereira que em viagem ao Rio de Janeiro assistiu o show “Opinião” com a cantora e compositora Nara Leão[47], Zé Kéti[48], um compositor e cantor popular da velha guarda do samba do Rio de Janeiro e João do Vale[49], nordestino do Maranhão que na década de 50, através do rádio consegue projetar nacionalmente o seu nome. Pereira que já no Colégio Liceu do Ceará se envolveu com movimentos políticos e culturais, chegando a produzir com ilustrações do seu colega de classe Fausto Nilo um jornalzinho intitulado Alvorada, ao chegar no ambiente universitário amplia sua atuação como agitador cultural. O GRUTA realizou caravanas culturais para o interior do Ceará e para a Argentina. Também produziu um festival de música apresentado no Theatro José de Alencar em 1967 que teve como vencedor o estreante Raimundo Fagner. Esse ainda com a menor idade civil foi convidado por Cláudio Pereira para uma caravana cultural que saía de Fortaleza de ônibus e passava até 45 dias viajando.
Cláudio Pereira recorda que:
[...] o GRUTA era um grupo enorme, incansável [...] era anárquico, espontâneo. Você quer ver: nós juntamos uma vez, uma loucura, cento e tantos estudantes em dois vagões de trem pra levar cultura pro Cariri[50], na maior desorganização que deu certo, era uma confusão [...] fomos com uma exposição de arte, com som em praça, teatro de rua, teatro em palco também, show musical, foi realmente uma coisa marcante, tanto que depois da apresentação do Crato[51], nós fomos proibidos de apresentar em Barbalha[52] [...] esse ano faz quarenta anos de GRUTA, quarenta anos da esquerda festiva. (4 de junho de 2006).
Em suas viagens, além de música, poesia e teatro, o grupo também levava exposições de artes-plásticas e fotografias, nessa viagem ao Cariri também foi um time de futebol e líderes políticos, somando mais de cem pessoas em dois vagões de trem. A expressão “esquerda festiva” usada por Cláudio Pereira denota uma certa autonomia artística frente às questões político-partidárias. O GRUTA funcionava como um órgão cultural do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFC mas mantinha certa independência assim como a relação estabelecida entre o CPC e a UNE.
Existe um documento de legalização do CPC local que aponta Augusto Pontes como seu coordenador artístico[53] com data de 4 de outubro de 1963, e neste consta a assinatura do mesmo como relator. Não encontramos nenhum marco inaugural do Cactus e do GRUTA, contudo percebemos que foram iniciativas que movimentaram artisticamente o ambiente universitário com música, teatro, poesia, artes-plásticas, tendo como pano de fundo o discurso da liberdade, que inicialmente se contrapõe especificamente aos militares mas que também se amplia em todos os sentidos, inclusive a liberdade de não ter que fazer um discurso unicamente político.
Rodger assim nos apresenta o GRUTA como sendo
[...] do DCE (Diretório Central dos Estudantes, da UFC), uma invenção do Cláudio Roberto de Abreu Pereira, cujo diretor de espetáculos (Teatro, Música e performances) era Francisco Augusto Pontes. Cactus e GRUTA existiram nos anos de 1964 a 1967, tudo muito universitário. O GRUTA também realizou um festival importante, em 1967 [...]. Ali concorria "Mundo-Mudá" (Rodger/Augusto Pontes). Wilson Cirino me passou o violão e acompanhei minha música naquela noite e na grande final no José de Alencar[54], onde tiramos o 2º lugar. A Mércia Pinto ficou com o 1º e Petrúcio/Brandão com o 3º lugar. (2 de fevereiro de 2006).
Augusto Pontes nos informa que “Cactus e GRUTA são paralelos, o Cactus um pouco antes.” (19 de maio de 2006). O que nos interessa observar é que estamos visualizando as convergências de um grupo de estudantes originários das classes médias do Ceará começando a desenvolver suas aptidões artísticas em torno de temas em comum, em um contexto político e cultural que proporcionava uma atuação coletiva. Essas ações culturais encontraram alguns referenciais externos que são comuns. Destarte, percebemos uma formação política e artística que definem gostos musicais semelhantes. Apontamos anteriormente as coincidências, não na qualidade de casuais e sim incidências que se dão concomitantemente em espaços diferentes tendo como suporte uma estrutura que faz circular nacionalmente os grandes nomes da música popular brasileira que os antecediam; observamos aspectos formativos desde a origem familiar, passando pela vida estudantil. Em seguida veremos que são recorrentes as menções aos bossanovistas, tropicalistas e aos mineiros que ficaram conhecidos com o Clube da Esquina, além dos Beatles e dos Rolling Stones.
4.2 Referências à bossa-nova, tropicália, clube da esquina, beatles e rolling stones
Os jovens artistas, ainda amadores, começavam a consolidar suas criações em âmbito local, especialmente dentro da universidade, através de pequenas apresentações promovidas pelos próprios estudantes, identificamos assim, a partir dessas primeiras aparições públicas, ainda que restrito aos estudantes universitários, o começo da consolidação de um sub-campo musical na cidade de Fortaleza.
Se esse grupo não fazia a mesma música, no sentido estilístico, que seus antecessores cearenses, nem a música que circulava nacionalmente, também não se filiavam à tradição acadêmica musical de seus contemporâneos, logo o que faziam era algo próprio, que encontra nesses outros sub-campos algumas interseções, mas não se confunde com os mesmos. Assim também acontece em relação à bossa-nova, os artistas aqui em questão não são compositores nem intérpretes bossanovísticos, mas também não se isolam da mesma.
Para alguns a nova forma de tocar violão e de cantar de João Gilberto chega com muita força, para outros nem tanto, o mesmo em relação às harmonias e melodias desenvolvidas por Tom Jobim e a poesia de Vinícius de Morais, para citar três ícones do samba-classe média de apartamento, como classificam, não sem motivo, estudiosos e críticos da música. Não obstante, a bossa-nova traz uma nova gramática musical que chega para todos em maior ou menor grau de empatia.
Para Belchior a importância dos bossanovistas chegou depois que muitos de seus pares já tocavam e cantavam as canções gravadas por João Gilberto.
Eu aprendi a gostar da “bossa-nova”. Quando eu comecei a fazer música, “bossa-nova” era uma referência muito alta, quando eu ouvi João Gilberto, esse pessoal mais importante da “bossa-nova”, os personagens históricos. Eu só comecei a gostar de “bossa-nova” depois que eu vi que era uma coisa importante mesmo [...]. (20 de junho de 2006).
E Fagner declarou que a “bossa-nova chegava, mas não ficava. Batia e voltava.” (19 de junho de 2006), contudo o cantor gravou em 1993 um disco intitulado Demais que é o nome de uma das músicas de autoria de Tom Jobim e Aloísio de Oliveira, sob a direção de um ícone da bossa-nova, Roberto Menescal, e o disco ainda traz outros clássicos do gênero como Minha Namorada de Carlos Lyra e Vinícius de Moraes, Eu sei que vou te amar de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Dindi de Tom Jobim e Aloísio de Oliveira, e Manhã de Carnaval de Luiz Bonfá e Antônio Maria. Podemos então interpretar que para Fagner, podia até “bater e voltar” nos anos 60, mas assim como para Belchior e ainda mais tardiamente para o compositor de Orós, o que “bateu” de alguma forma ficou, chegando a penetrar em sua obra. As informações que trazemos acima foram retiradas do site “www.raimundofagner.com.br” no qual também encontramos um depoimento de Fagner sobre o referido disco cedido ao jornalista cearense Luciano Almeida Filho no qual ele em nenhum momento cita o nome bossa-nova, se referindo ao repertório como “canções que marcaram a história da música Popular no Brasil [...]. É uma forma de ressaltar a música popular, o samba-canção, que é uma coisa bem brasileira.” Ainda que o intérprete assim se refira às músicas, o que também é apropriado, a presença da bossa-nova é flagrante e ainda mais quando no texto que apresenta o disco, o pesquisador Evangê Costa escreve que “a idéia do disco ‘DEMAIS’, de reviver os principais temas da ‘bossa-nova’ e do samba-canção já vinha tomando corpo há muito tempo, e foi amadurecendo com o tempo[55].”
Os primeiros contatos com as músicas de Tom Jobim, João Gilberto, Vinícius e demais bossanovistas não aconteceram dentro da universidade. A bossa-nova se disseminou nacionalmente no final dos anos 50 e início dos anos 60 e, certamente, os mais interessados por música já tinham contato com esse som diferente que marcou essa geração, já que, de acordo com o jornalista Dalwton Moura (2004[56]),
Tudo que era jovem, moderno ou estava na moda passou a ser chamado “bossa-nova”. Acrescente-se ao furor daquela nova maneira de cantar, mais “cool” e com menos volume de voz, o fato de 1958 ter sido um ano alvissareiro para o Brasil, também em termos políticos, com JK, e esportivos, com a primeira copa do mundo conquistada.
A moda da batida diferente já não estava tão em alta, como nos informa Fausto Nilo sobre as reuniões na Escola de Arquitetura “que ainda um restinho de “bossa-nova”; “bossa-nova” tinha passado um pouco, mas tinha ainda.” (12 de junho de 2006).
Mesmo com fortes influências externas, esses estudantes-artistas começavam a produzir algo que era autônomo, não no sentido de descolado do meio musical, das demais manifestações, ao contrário, era em contato com variados estilos que estava sendo fomentada uma forma própria de produzir música, Fausto nos fornece subsídios para asseverar essa idéia.
[...] embora [...] o Rodger conhecesse tudo, fez uma música chamada “Baião” que é o “Bye bye baião” aí se remete à Humberto Teixeira, mas o Rodger, ele tem um componente de “bossa-nova” que envenena muito essa tradução e transforma n’outra coisa. (Fausto Nilo, 12 de junho de 2006).
Logo, esses jovens ávidos por novidades não tardariam a encontrar na bossa-nova uma forte referência que se tornava motivo de reunião em torno da música. Percebemos que o que os atrai dentro da universidade são gostos que já vem se delineando antes de se encontrarem no âmbito estudantil universitário; nesse sentido Dedé Evangelista assim nos esclarece essa idéia: “porque traduz um interesse comum de música, muito também, vinha desde a ‘bossa-nova’.” (2 de junho de 2006).
As palavras de Tânia Cabral também nos revelam que essa música estava ligada a essa geração de uma maneira geral, falando de suas impressões: “sinto uma afinidade muito grande com essa coisa da bossa-nova por causa da minha juventude mesmo.” (18 de julho de 2006). Era uma música ligada à juventude, um elemento da “moda nacional” como afirmou o jornalista Dalwton Moura. Mas podemos perceber que dois compositores tinham maior afinidade com as harmonias, ritmos e melodias bossanovísticas, sendo apontados como compositores de maior elaboração musical, são eles Rodger e Petrúcio Maia.
[...] o Rodger sempre foi um excelente violonista, sabia uns acordes fantásticos e eu ficava ali olhando, “brechando” os acordes que Rodger ia dar e aprendendo muita “bossa-nova” com o Rodger. Agora, engraçado, nunca fiz uma música de “bossa-nova”. (6 de junho de 2006).
Já apontamos anteriormente a referência que Fausto fez a Rodger em relação à bossa-nova se misturando com outras influências e podemos também observar nas palavras de Ricardo Bezerra a mesma idéia de uma nova música que, mesmo reconhecendo a forte referência, não se confunde com músicas desenvolvidas em contextos sociais diferentes. Confirmamos a distinção nas próprias palavras de Bezerra quando disse: “Agora, engraçado, nunca fiz uma música de ‘bossa-nova’.” (6 de junho de 2006)
Francis, em meio à diversidade, associa o compositor Petrúcio Maia à bossa-nova: “o Petrúcio tem também alguma coisa de Beatles, mas muito pouco, é muito uma coisa da ‘bossa-nova’, da música brasileira, do samba, do baião, Luiz Gonzaga.” (1º de maio de 2006).
Téti fala de seus primeiros contatos com a bossa-nova:
O meu contato com a “bossa-nova” foi quando eu comecei a ouvir meu irmão Vavá, o Rodger, o Ray Miranda. Na adolescência, já morando em Fortaleza, a gente se reunia muito lá em casa, na avenida João Pessoa e ficávamos horas a fio cantando ao som do violão ou ouvindo “bossa-nova” na radiola. (27 de novembro de 2006).
E Fausto nos auxilia na análise musical coletiva:
E o pessoal que tinha esse veneno da “bossa-nova” era o Petrúcio e o Rodger e eu como ouvinte, mas eu não fazia nada, ainda nesse período, e nem era compositor musical, a minha influência era nula sobre esse processo. Eu sempre vi o grupo assim, o pessoal... o Ricardo Bezerra gostava um pouquinho de “bossa-nova”. (12 de junho de 2006).
A percepção de Fausto é válida na medida em que identifica maior afinidade dele mesmo, Petrúcio Maia, Ricardo Bezerra e Rodger com a bossa-nova. Mas cruzando as informações podemos perceber que a bossa chegou para todos, de forma diferente e com intensidade variada, mas chegou para todos, para toda aquela juventude, e se misturava com outras referências.
A diversidade é o que mais caracteriza a formação desse grupo, já identificamos a música acadêmica, os grandes cantores do rádio das décadas de 30 e 40, os compositores e cantores cearenses que antecederam o Pessoal do Ceará, a bossa-nova entre outros estilos musicais que chegaram aos ouvidos dos sujeitos dessa pesquisa.
Ednardo sustenta essa afirmação com suas palavras:
Eu ouvia de tudo [...]: Tom Jobim, João Gilberto [...], Orlandivo [...], Jovem Guarda, Beatles, Rolling Stones, o “rocão” pesado, naquela época que era uma coisa marginal [...], músicas românticas também, Orlando Silva, sabe, Vicente Celestino, Francisco Alves. Vicente Celestino tinha um programa aos domingos de uma hora só com músicas dele e minha avó alucinada por Vicente Celestino, aí ela cantava assim, botava o rádio lá e eu lá de orelha junto com ela aprendendo aquelas coisas todas. (10 de junho de 2006).
Entre as demais referências, algumas já apontadas acima, também existiam outras que são recorrentes nas falas dos sujeitos como o Clube da Esquina que se refere a um grupo de mineiros contemporâneos dos artistas em questão e mais fortemente a Tropicália.
Identificamos alguns traços que criam uma afinidade entre os tropicalistas, os mineiros e os estudantes-artistas da Universidade Federal do Ceará. Suas músicas encontraram na universidade um campo fértil para seus desenvolvimentos. As instituições de ensino superior conseguiram até certo ponto manter uma autonomia frente ao regime militar. Somos levados a relativizar porque vários desses artistas foram presos e alguns exilados: Caetano Veloso e Gilberto Gil foram para Londres, Rodger ficou preso durante nove dias por ter mimeografado um panfleto do movimento estudantil, Fausto Nilo foi preso no congresso da UNE em Ibiúna-SP, Cláudio Pereira também foi levado para prestar esclarecimentos junto a autoridades militares. Contudo, foi no âmbito universitário que suas músicas encontraram seu primeiro público e foi a partir das universidades que suas vozes foram ouvidas.
Vários estudos e pesquisas já registraram esse aspecto. Para ilustrar, trazemos as palavras de José Miguel Wisnik (1980, p. 16) que escreveu sobre a Tropicália: “O tropicalismo (fim dos anos 60): devolve a MPB universitária, herdeira da bossa-nova, ao seu meio real, a ‘geléia geral brasileira’, foco de culturas.” O fato de estarem ligados à universidade também revela uma origem social ligada às classes médias – como já analisamos anteriormente –, o que também se aplica aos tropicalistas, certamente com características locais que os diferenciam dos cearenses, mas numa visão macrossocial, podemos perceber essas identificações. Ana Maria Bahiana (1980, p. 25) analisando os anos 70 nos apresenta uma visão esclarecedora:
A formação universitária [...] está no próprio miolo da música brasileira nesta e nas duas décadas passadas. A visão do veio principal da música, no Brasil, é, necessariamente, a visão das universidades [...] Isso significa, em última análise, que o circuito se fecha de modo perfeito: a música sai da classe média, é orientada pela classe média e por ela é consumida.
Outra característica semelhante entre os cearenses, os baianos e os mineiros – em especial entre os dois primeiros – é a acolhida simultânea de várias vertentes musicais: nacionais, locais, internacionais e de seus antecessores. Podemos substituir a expressão “ruptura cultural” por “transbordamento cultural”, resgatando a idéia modernista da antropofagia. Os baianos levantaram essa bandeira e sempre fizeram questão de anunciar essa posição bem definida o que por outro lado marca uma diferenciação com os cearenses. Francis Vale faz um interessante cotejamento sobre esse aspecto:
[...] o pessoal daqui nunca foi de muito espalhafato, né? Sempre foi um pessoal muito sóbrio; os baianos é que, chegou um momento que usavam umas roupas, umas coisas, entraram naquela coisa da contracultura, os roupões; o pessoal daqui sempre se vestiu com uma certa sobriedade... (1º de maio de 2006).
Logo, percebemos desenvolvimentos concomitantes e semelhantes, mas com nuances locais que os distinguiam. Nossa análise nesse trabalho não se filia totalmente a uma visão, mantém esse movimento entre identificações e distinções, entre a unidade e a totalidade, o individual e o coletivo. Portanto, vendo nacionalmente confirmamos várias semelhanças e ao nos aproximarmos encontramos aspectos diferenciadores.
No disco Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem que recebeu como sub-título Pessoal do Ceará encontramos uma miscelânea de ritmos e temas que traduz esse “transbordamento cultural” através do maracatu, do rock e da toada[57]. As poesias descrevem diversos cenários: do litoral ao sertão, passando pela região urbana e nelas encontramos o amor, a filosofia, a crítica aos meios de comunicação e à política.
Vejamos essas características no disco-marco que utilizamos como principal critério de seleção dos sujeitos da pesquisa:
A música Ingazeiras – letra e música de Ednardo interpretada por ele – é um “baião”[58] que inicia com um violão e depois somado ao som de uma viola com acompanhamento percussivo reforçam a sonoridade nordestina[59]. Cordas e flautas fazem o intermezzo[60] que lembram melodias de pífanos e desemboca em alguns acordes nos “metais[61]”. A letra fala do desejo do nordestino de conquistar o sul maravilha em busca da realização de seus sonhos. Saído do interior do Ceará, do “oco do mundo”, e de forma destemida “sem ter o espanto da morte” sai “abrindo porteiras, varando cancelas” seduzido pelo “sul, a sorte, a estrada”.[62]
Na introdução da música Terral – de Ednardo interpretada por ele, aparece um ponteio de uma viola (cordas de aço)[63] acompanhado pelo violão anunciando uma sonoridade rítmica narrada na letra que remete o ouvinte às paisagens cearenses de dunas brancas e de um céu sem poluição. Na mesma peça musical o maracatu[64] enfatiza essa paisagem cearense, porém revelando certa inquietação com “eu tenho a mão que aperreia” o sentimento latino americano e cosmopolita do português ao inglês “Sou da América, Sul da América, South America” também pulsa com a batida do maracatu, nesse mesmo ritmo o autor tece uma crítica social local “sou da nata do lixo, sou do luxo da aldeia, sou do Ceará”, e numa aproximação ainda mais localizada a letra “bate na porta pra aperrear” de um bairro que abrigou a aristocracia fortalezense, a Aldeota. Por fim retorna a uma paisagem romântica descrevendo a Praia do Futuro[65] acolhendo a vida e o amor[66].
Cavalo Ferro – letra de Ricardo Bezerra e música de Fagner interpretada por Ednardo, Rodger e Téti – é a faixa do disco que melhor traduz o sentido coletivo musical, pois uni os três cantores (Ednardo, Rodger e Téti) interpretando dois outros dos seus pares. Um rock[67] que traz uma letra narrando a saga de um valente montado em um “cavalo-ferro” que não teme a morte: “vivi, campos verdes me enterro em terras tropicamericanas”, enfatizando um sentimento latino americano. O autor lança uma crítica política referente ao governo brasileiro quando diz: “no Planalto Central, onde se decide o bem e o mal” que é um “lugar ainda mudo, concreto, ferro, surdo e cego” e o cavaleiro se reencontra em um “caminho certo, sem perigo fatal”[68].
Curta metragem – letra de Dedé Evangelista e música de Rodger interpretada por Téti – é executada em andamento[69] lento o que proporciona reflexões em torno da letra. Esta traduz o ambiente urbano das marquises e dos jornais que não comportam a vida, mas ninguém percebe além de suas folhas, e a impotência do homem frente à normalidade do cotidiano opressor lançam uma crítica ao modo de vida dos habitantes de uma cidade fria onde se considera que “está tudo tão direito” e ainda que se tente mudar “não há nada pra ser feito”, portanto a conformação é a única opção: “melhor se desculpar”.
Falando da vida – letra de Dedé Evangelista e música de Rodger interpretada pelo mesmo remete o ouvinte a uma sonoridade blues[70] que inicia com uma melodia nos sopros, acompanhada por uma viola (cordas de aço) e um piano. A letra em primeira pessoa sugere um diálogo na qual uma pessoa fala imprimindo um ar trágico-misterioso-boêmio alertando a outra que um encanto no meio do dia não pode ser quebrado, sem choros, mas sem seriedade. O sujeito também faz uma apologia ao prazer: “não vou prometer ficar sério” e “não venha estragar meu prazer”. O ar misterioso somado à busca do prazer retorna com “no meio da noite não posso deixar de sair” e conclui com uma afirmação trágico-boêmia: “se a morte vier me encontrar ela sabe que estou entre amigos falando da vida e bebendo num bar”.
Dono dos teus olhos – letra e música de Humberto Teixeira interpretada por Téti. A música em andamento lento dá espaço para o romantismo trazido na letra: alguém que sente ciúmes de seu amado; um apaixonado exaltando a beleza azul dos olhos de outrem e o deseja tão fortemente que chega a querer cegá-lo para tornar-se a luz dos olhos do amado. A inserção dessa peça aponta para a reverência aos compositores da geração anterior e confirma a idéia que expusemos anteriormente de um não rompimento com a cultura passada e sim de um acolhimento da diversidade, o que traduz também a idéia de liberdade, ou seja, o não preconceito com as diversas formas de produzir arte.
Palmas pra dar ibope – letra de Tânia Araújo e música de Ednardo interpretada por ele. A letra ironiza a busca do sucesso no mercado fonográfico que tem como norte os índices de audiências. Para essa crítica o compositor se valeu da agressividade do rock.
Beira mar – letra e música de Ednardo interpretada por ele – encontrasse em andamento lento com algumas passagens rítmicas em que os músicos imprimem maior intensidade na execução traduzindo certa agressividade. Uma letra romântica com uma paisagem pouco definida, sem traços explícitos, mas prenhe de significados simbólicos. Luzes que escondem a amada, a lua, a velocidade do som, a praia, a cidade, um gosto na boca, a voz rouca e a noite findando formam um quadro impreciso que mais sugere que descreve através de sentimentos e imagens.
Susto – letra e música de Rodger interpretada por ele – é um rock introduzido com notas cromáticas[71] no baixo do violão, um trompete com surdina[72] e congas[73] em um clima de suspense enfatizado pelas cordas. A voz de Rodger inicia ornamentada[74] pela melodia de um sax. As cordas deslizam notas em legato[75]. Uma poesia que traz os símbolos de uma porta para um caminho, contas bancárias, praia, Planalto Central e uma indiferença meio doentia a tudo, inclusive a alguma certa menina da rua causadora de febre, em um final romântico-dramático.
A mala – letra de Augusto Pontes e música do Rodger com interpretação de Téti – inicia com acordes[76] executados no piano somados a vocais em background e a voz principal quase falada formam os aspectos musicais que acompanham a letra. Esta descreve luzes coloridas que saem de uma mala no canto da sala. Olhos hipnotizados são guardados na mala e viajam mil mundos. As luzes piscam e geram preguiça vedando os sentidos, os desejos e vendendo aspirinas e embalagens. A letra descreve os efeitos da televisão: uma mala piscando no canto da sala.
A análise que fizemos acima está longe de esgotar as riquezas musicais e poéticas das obras, contudo satisfaz o nosso objetivo nesse momento que é verificar a diversidade encontrada em um único disco, traduzindo o espírito dos demais compositores, letristas e intérpretes que, a partir desse disco, passam a ser chamados de Pessoal do Ceará[77]. E nesse sentido, essa é uma das características mais presentes que coincide com os tropicalistas. Captar todas as linguagens possíveis e devolver algo novo para o meio artístico. No mesmo disco que nos tem servido de referência existem alguns textos e fragmentos de textos que apresentam o então recém batizado Pessoal do Ceará. Entre esses textos encontramos as seguintes sugestivas palavras de Augusto Pontes: “Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem. Enfim comemos muito a cultura nacional e sempre querendo que a “comida” fosse melhor. Continuamos nesse banquete, mas, começamos a botar os pratos na mesa, para distribuir o nosso angu...”
Contudo, os baianos chegaram primeiro ao disco e lançaram em 1968 o disco-marco Tropicália ou Panis et Circensis gravado pela Philips. As músicas de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, o piauiense Torquato Neto, as letras de Capinam, a reverência a Vicente Celestino na gravação da música Coração materno, a voz de Gal Costa e a sonoridade do trio paulista Os mutantes[78], diziam muitas coisas, não só no sentido literal do texto, mas de postura artística, que encontravam reverberação nos cearenses que também buscavam uma nova forma de se manifestar, de ser e de estar no mundo. Com toda essa associação simultânea de interesses comuns, quando as músicas desses baianos chegaram aos contemporâneos cearenses, a identificação foi tamanha que não tinha como não se tornar uma referência para os mesmos. A comparação feita pelos próprios sujeitos é praticamente inevitável, como podemos observar na fala de Belchior:
Eu sempre coloquei pra mim mesmo a questão de se a nossa ótica podia ombrear os baianos, os mineiros, com diversos grupos que estavam estabelecidos, não que eu duvidasse disso, mas era uma questão pra mim, era uma questão posta. O Augusto tinha a certeza íntima e pública disso, de que a gente vai lá e desponta. (20 de junho de 2006).
Percebemos, portanto, que os tropicalistas inspiraram, em certa medida, a decisão do investimento no caminho artístico, de se aventurar no desconhecido mundo fonográfico em outro Estado, de maior porte e de maior complexidade econômica e social como Rio de Janeiro ou São Paulo.
Mesmo sendo a presença baiana mais forte para os artistas alencarinos, os mineiros também são citados como um grupo já estabelecido e Cláudio Pereira abre ainda mais o leque das influências. “Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo. Eles foram muito presentes na nossa vida de então, porque todos eles também tinham um pensamento de fundo: a luta pela liberdade [...].” (4 de junho de 2006).
Para melhor fundamentação das idéias aqui expostas vamos selecionar mais algumas falas dos sujeitos que se referem aos seus pares baianos e mineiros, como forma de demonstrar que as percepções, ainda que particulares, com pontos de vistas em ângulos diferentes, captam traços semelhantes sobre eles próprios e sobre o que servia de parâmetro para o que vinham produzindo.
Assim fala Dedé Evangelista:
A “Tropicália” foi um pouco antes do aparecimento dessas pessoas, teve uma influência da “Tropicália”. O disco do Caetano, do Gil, as músicas dos baianos, elas serviram também como ponto de referência [...]. Acho que a maior influência mesmo foi “bossa-nova” e “Tropicália”, pelo menos do grupo que eu conhecia. (2 de junho de 2006).
Ednardo em uma viagem chegou a passar pela Bahia com a intenção mesmo de ver como aqueles baianos estavam trabalhando e lembrou de outro baiano que também serviu de referência para ele e para seus pares cearenses.
[...] eu tava de férias da Petrobrás, aí eu fui lá em Salvador [...] minha atitude já era assim, por exemplo, de procurar espaços onde eu pusesse desenvolver o lance musical. Como a Bahia tinha a transação da “Tropicália”, aquela coisa todinha e já estava numa certa efervescência, nacionalmente falando, e eu: “Pó! Vou lá saber como é o pessoal tá fazendo essas coisas”, e fui lá [...]. Quem permeabilizou esse grupo junto à “Tropicália” com o “Pessoal do Ceará”, por incrível que pareça, foi um baiano chamado Piti. (11 de junho de 2006).
Perguntamos ao Fagner quais as influências nacionais no final da década de 60 e começo de 70 e, incluindo Paulinho da Viola, ele confirmou o que vem sendo dito pelos demais: “Chico, Caetano, Gil, Milton. Esses foram os básicos, né? Depois Paulinho mais no folclore de carioca, de samba [...] aqueles fortes mesmo, que chegaram com força, foi Chico e Caetano. Caetano muito forte.” (19 de junho de 2006).
Fagner assevera o alto nível musical dos mineiros e faz uma comparação interessante entre diversos agentes do campo musical brasileiro.
[...] aquela turma é formação pra mim total, principalmente os mineiros a nível de música, de conceito musical [...]. Em Minas a qualidade musical, as informações musicais, as somas musicais, tinha uma geração mais só de músico envolvida [...]. Minas, eu acho, que tinha um conceito musical mais apurado do que todo mundo. E da Bahia a danação, a danação de tudo, que tirava a gente do chão, que nos incentivava a ir mais longe. E de Chico talvez a referência, a coerência a imagem. Tá entendendo? A verdade, a coisa bonita brasileira. (19 de junho de 2006).
Fausto Nilo tece uma análise que também confirma o que estamos asseverando no que se refere à formação desses então jovens artistas.
Nós, como os baianos, já estávamos agitando quando eles estavam lá. Só que eles chegaram antes, eles foram, migraram e fizeram resultados imediatamente, e nós tomamos conhecimento ainda aqui, quando a revista “Veja” deu uma capa e um número especial sobre os baianos, nós ainda morávamos no Ceará, e naturalmente isso vai influir na gente. Isso, na minha opinião [...], vai influir na vontade também de migrar, na vontade de apresentar uma nova visão, um novo tipo de canções [...]. (12 de junho de 2006).
Ricardo Bezerra também assegura que a Tropicália foi uma importante referência.
Porque nós tínhamos influência dos baianos, das coisas que estavam acontecendo no Rio de Janeiro, aquela coisa da música de protesto, “Tropicália”, muito da “Tropicália” [...] a gente tava meio que seguindo padrões desses exemplos todos [...] fazendo coisas nos padrões que a gente já ouvia, mas no fim a gente conseguiu fazer uma coisa que tinha uma certa originalidade. (6 de junho de 2006).
E perguntado sobre os mineiros, Bezerra também confirmou a influência dos jovens que formaram o Clube da Esquina.
[...] eu considero, ainda hoje, o grupo mineiro como um grupo musicalmente mais bem elaborado, mais pro lado do erudito, as harmonias fantásticas que até hoje eu ainda gostaria muito de aprender as harmonias daquela turma, porque são umas coisas muito evoluídas, as melodias com aquelas orquestrações, aquilo foi forte influências também. (6 de junho de 2006).
Consideramos importante lembrar que essa movimentação em torno da música ligada à ambiência universitária, que tem origem nas classes medianas e sofrem influências de uma contracultura que vem se desenvolvendo desde os anos 60 na Europa e nos Estados Unidos, vinha acontecendo em outros lugares do país. Geraldo Azevedo, Alceu Valença e Naná Vasconcelos em Pernambuco, Zé Ramalho na Paraíba, só para citar alguns exemplos. Portanto, percebemos que toda uma geração brasileira sofre processos sociais semelhantes e, especificamente, os nordestinos que resolvem desbravar o mercado fonográfico no eixo Rio - São Paulo sofrem dificuldades também semelhantes.
Bahiana (1980, p. 33-34) observa que
São compositores migrantes [...]. Trazem consigo, portanto, vivências novas, a luta contra a província, o deslocamento do provinciano na “cidade grande”, o problema da sobrevivência cultural [...]. São dados novos, que expressos claramente em música, texto e postura, alimentarão a produção musical do país, abrirão novas frentes de discussão e enriquecerão o debilitado veio “universitário”.
Bahiana chega à conclusão que a produção vinculada ao público universitário começa a se esgotar e que os festivais servirão como porta de saída para encetar uma nova empreitada no mercado fonográfico; e é o que realmente ocorre com os cearenses.
O espírito antropofágico de recepção das mais variadas tendências deglute também a música internacional, as bandas The Beatles e Rolling Stones são as mais citadas nas falas dos sujeitos. Belchior chega a comparar sua relação de consumo dos discos das bandas inglesas e dos compositores brasileiros. Sua prioridade é para Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento e seus pares, enquanto o rock internacional ficou restringido a ouvir na casa de um amigo.
[...] eu me lembro de ir da minha casa à casa do Carlos Emílio Ferreira Lima que tinha muitos discos e fitas dos Rolling Stones, para ouvir Rubber Soul, dos Beatles, pra ouvir Revolver [...] eu achava muito caro o disco e quando eu comprava disco, eu comprava disco, assim, do Chico Buarque, Caetano Veloso, dessa tropa aí. Milton Nascimento. Eu comprava poucos discos e eu gostava de ouvir muitos discos do universo “pop”, e quem tinha isso era o Carlos Emílio. (20 de junho de 2006).
A declaração de Belchior sinaliza sua preferência musical, mesmo que não desprezando outros estilos. Cláudio Pereira também reconhece a recepção da música internacional, mas faz uma ressalva: “[...] as músicas dos Beatles e aquela maneira revolucionária, depois veio os Rolling Stones, esse pessoal todo teve influência, claro, para a música aqui. Mas eu acho que a nossa linguagem era muito própria.” (4 de junho de 2006).
Ednardo amplia sua análise e associa as movimentações internacionais lembrando da guerra no Vietnã, dos regimes ditatoriais que aconteceram em outros países da América do Sul e evidencia o aspecto formativo do contato, ainda que apenas como informação, com a realidade internacional. Ele afirma:
[...] todos esses movimentos com certeza, sabe, eles devem ter influído também, fazia parte dessa argamassa, desse caldo cultural, da gente aprender um pouco com eles, se formar um pouco através dessas informações e também ter o nosso posicionamento. (11 de junho de 2006).
Interessante notar que Pereira enfatiza uma “linguagem própria” e Ednardo pontua uma certa independência quando diz “também ter o nosso posicionamento”, o que reforça a idéia da antropofagia de não desprezar nada e criar o novo. Fagner também traz uma declaração nesse mesmo sentido: “Pra mim influenciou tudo, tudo, tudo. Tudo em Brasília, tudo, o final dos Beatles [...].” E insiste na mesma idéia: “Eu queria essas somas. Somar com tudo! Somar com música internacional, somar.” (19 de junho de 2006).
Fausto Nilo ressalta o desejo de fazer algo próprio, se distinguindo do que acontecia localmente.
[...] nós já estávamos influídos por ondas que vinham da Europa, que vinham de Londres, [...] tínhamos “bossa-nova” no sangue, já tínhamos aquelas primeiras coisas do Beatles rolando, Rolling Stones. Essa misturada aí já dava uma posição da estética, já incluindo a parte musical e letra e tudo que questionava e confrontava com essa formalidade do “beletrismo” local [...]. (12 de junho de 2006).
As palavras de Nilo deixam clara a demarcação de terreno, nesse sentido, mesmo o espírito sendo antropofágico, não significa que eles estavam dando continuidade ao que era feito antes, ao contrário tem uma intenção de transformação do que vigorava, da música aceita socialmente. Esse aspecto é capitalizado quando saem do Ceará. Fausto exemplifica claramente a vantagem estratégica de se fazer algo novo naquele momento:
[...] quando, no Rio de Janeiro, os caras ouviam o Fagner com as letras do Brandão, estranhíssimo, e mesmo a letra nossa, um garoto com aquele violão e com aquela agressividade e com uma letra daquela, que nem era dele e nem era a do “beletrista” provinciano, todo mundo pirava, bicho. Chegou uma hora que todo mundo percebeu esses meninos do Ceará [...] isso deu uma abertura para o pessoal gravar, fazer tudo [...]. (12 de junho de 2006).
Assim como Pereira e Belchior, Ricardo Bezerra também faz uma ressalva sobre a recepção rock londrino: “[...] naquela estória de Beatles e Rolling Stones eu sempre fui Beatles [...] por que eu gostava de “bossa-nova”, o cara sair da “bossa-nova” pros Rolling Stones é um salto grande demais pra minha cabeça; e os Beatles era uma coisa meio termo [...].” (6 de junho de 2006).
Essa clareza de percepção da elaboração estética e a capacidade de fazer as comparações e se posicionar revela a boa iniciação à linguagem musical, que no caso de Ricardo Bezerra foi com a professora Vanda Costa do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno e com as aulas teóricas do professor Orlando Leite.
Logo podemos concluir que bossa-nova, Tropicália, Clube da Esquina, The Beatles e Rolling Stones produzem sonoridades[79] que circulam na sociedade. Não se trata de dependência cultural, pois a música produzida pelos artistas em questão não se confunde com a “bossa” carioca, nem com as harmonias mineiras, nem com o rock londrino. Os baianos são os que guardam mais semelhanças não só musicais, mas em especial na postura artística, como aquela que foi traduzida de perto para os cearenses pelo baiano Piti. Mas não há como dissociar totalmente das outras sonoridades produzidas por esses outros movimentos, grupos e bandas por eles citados, pois, como afirma Tânia Cabral, “uma coisa que toca em rádio, toca em tudo, acaba ficando alguma coisa.” (18 de julho de 2006).
4.4 Pontos de encontro: arquitetura, institutos básicos, ceu, casas e bares
Os gostos musicais funcionavam como senhas de comunicação entre os sujeitos. Através de suas afinidades os artistas se reconhecem mutuamente e iniciam trocas, parcerias e fazem leituras semelhantes das músicas que circulam nacionalmente; dessa forma se encontram e firmam parcerias.
Os interesses comuns funcionam como ímã levando os sujeitos para os mesmos espaços. A convergência para a universidade através dos investimentos familiares é uma estratégia comum às famílias das classes médias, conforme já analisamos. As diversas coincidências formativas, acadêmicas, extra-escolares, musicais também já foram apontadas e devidamente analisadas. Iremos agora nos aproximar da forma como opera nesses artistas e entre os mesmos essas afinidades, como e onde. Olhando de longe e comparando as trajetórias, percebemos as unidades que convergem para um sub-campo musical que estamos chamando, assim como os produtores, jornalistas e outros pesquisadores, de Pessoal do Ceará, fomentando um caráter coletivo que identifica essa geração no final da década de 60 e início de 70. Ao nos aproximarmos desse sub-campo encontraremos espaços físicos, lugares onde esses gostos entram em embate com o cotidiano, se afirmam, se transformam, amadurecem e afloram adustos.
Conforme estamos procedendo, é através das falas dos sujeitos, identificando pontos recorrentes, que vamos reconstituindo o cenário onde a música foi produzida por esses artistas e estudantes que circulavam na UFC, nas casas de alguns e nos bares. À medida que nos aproximamos dos artistas e dos espaços constataremos diferenças individuais, e não poderia ser diferente, pois em meio à diversidade, os graus de aproximação com as linguagens que chegam a cada um são diferenciados.
Alguns sujeitos eram alunos da arquitetura ou simpatizavam com a mesma, como no caso de Fagner, que prestou vestibular para arquitetura em Brasília na UnB. Fausto Nilo e Ricardo Bezerra eram alunos de arquitetura da UFC. Fausto nos revela que desconfiava de um certo interesse de Augusto Pontes também pela arquitetura:
[...] acho que ele tava querendo me conhecer porque ele passava muito perto da minha mesa[80] com um livro de arquitetura, ele sabia que eu era da Arquitetura, e acho que tinha curiosidade, não por mim pessoalmente, mas ele tinha curiosidade de saber esse negócio de Arquitetura, como era essa estória aí, entendeu? Porque ele era muito ligado na arte. (12 de junho de 2006).
Através dos sujeitos da pesquisa também identificamos outro aluno do mesmo curso, o letrista Brandão e um compositor que também foi apontado como de grande competência musical, mas que deixou o convívio dos colegas ainda quando estudante, o Braguinha.
[...] o Braguinha que foi um cometa, passou, deixou um chorinho que é antológico, o “Encabulado”, que é um chorinho perfeito em termos de casamento de música e letra, a melodia é original e clássica como chorinho, mas que infelizmente o destino carregou mais rápido. Era um arquiteto muito talentoso, projetava muito bem, fazia uma arquitetura com traços cearenses e era um menino super talentoso e era uma vivacidade enorme; só entrava na escola gritando e xingando e dizendo nome feio e mexendo com todo mundo, era uma festa, quando ele entrava na escola você sabia que o Braguinha tava vindo, que ele da porta, ele já saía gritando e falando, era uma festa o Braguinha, realmente uma perda enorme. (Ricardo Bezerra, 6 de junho de 2006).
Augusto Pontes identifica a Arquitetura como um ambiente propício para o desenvolvimento dos objetivos dos artistas em questão: “[...] o espírito da Escola que emanava dos professores consentiam isso, que difícil nas outras escolas [...] a Arquitetura tinha um pátio muito grande, a própria natureza do curso e a História da Arte e a História da Cultura conduziam a isso, facilitavam.” (19 de maio de 2006).
Belchior estava mais ligado a outro ambiente, no bairro Porangabuçu em Fortaleza onde funciona a Escola de Medicina; ao observar aqueles estudantes na Arquitetura já percebia uma certa unidade com artistas mais desenvolvidos do ponto de vista de criação musical.
[...] quando cheguei as carreiras já estavam bastante avançadas [...] o pessoal era conhecedor da “bossa-nova”, que eu não conhecia. [...] a minha chegada, então, já me deu uma visão de que eu estava chegando num grupo de pessoas já com uma ampla experiência e uma história já até larga. [...] eu sabia que tinha um grupo ali de pessoas altamente integradas e que me admirava é que eram todas elas pessoas da universidade [...] a minha visão é que quando eu cheguei já tinha um grupo estruturado, com aquelas experiências do grupo Cactus. (20 de junho de 2006).
Cláudio Pereira, assim como Augusto Pontes, observa que a Escola de Arquitetura reunia as condições ideais para o encontro desse grupo.
Era o lugar mais agradável e que tinha a maior discoteca daquele tempo. Tudo que era de “bossa-nova”, tudo que era de Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano. Tinha a “Tropicália”, tudo tava lá, “bossa-nova”, João Gilberto, inclusive os mais antigos também, porque o Fausto curtia muita música de Noel Rosa, Pixinguinha, então era um barato, então ali a gente se juntava fazia música e ali começava. E logo em frente à Arquitetura tinha os Institutos Básicos da universidade, que também interagia muito uns com os outros, e os Institutos Básicos tinha o Clube do Cinema de lá, então misturava uma coisa com a outra. (4 de junho de 2006).
Cláudio Pereira aponta uma disposição geográfica que proporcionava ainda maior interação entre os estudantes pelo fato da Escola de Arquitetura e os Institutos Básicos da UFC, onde funcionavam os cursos de Matemática, Física e Química, serem praticamente vizinhos. A Arquitetura ficava e ainda fica no pátio vizinho à Igreja dos Remédios na Avenida João Pessoa e os Institutos Básicos se localizavam do outro lado da avenida, em frente à mesma Igreja.
A entrevista com Dedé foi feita em uma sala onde funciona atualmente um projeto da UFC que se chama Seara da Ciência, onde Dedé continua atuando; essa sala se encontra no mesmo prédio onde funcionavam os Institutos Básicos. O letrista e físico Evangelista lembra da interação com os estudantes de arquitetura: “[...] tem os arquitetos, aí tinha todo esse pessoal que fazia arquitetura: o Campelo, o Fausto, o Pepe, o Braguinha que era o pessoal realmente de arquitetura. Esse pessoal todo participava muito, então a gente se encontrava muito.” (2 de junho de 2006).
Ednardo, que mesmo não tendo sido um freqüentador assíduo das reuniões que aconteciam na Arquitetura, também reconhece o beneplácito dos professores que, somado ao ambiente de estudo de artes, inerente ao curso de Arquitetura, facilitava o desenvolvimento dos projetos artísticos dessa turma de amigos.
[...] o lugar era mais convidativo, o Neudson Braga que dirigia a Escola de Arquitetura era simpático à presença de alunos de outras faculdades, principalmente pessoas ligadas à área das artes, e o diretório acadêmico da Escola de Arquitetura tinha excelente discoteca aberta a outros freqüentadores. (10 de junho de 2006).
Fagner passou a freqüentar o Diretório de Arquitetura a convite de seu parceiro e amigo Ricardo Bezerra, segundo ele era “lá que a coisa esquentava mais, porque se respirava a cultura”, e compara com outro ponto de encontro: “No Anísio respirava-se a boemia.” (19 de junho de 2006).
O Fausto foi presidente do Diretório Acadêmico de Arquitetura e implementou uma política de compra de discos que ficavam disponíveis para qualquer estudante que quisesse ouvi-los, inclusive de outros cursos. Seus depoimentos são extremamente reveladores e nos levam a um mergulho naquele ambiente.
[...] a gente começou a fazer uma discoteca de Música Popular Brasileira, na época eu fui presidente do diretório, então essa discoteca começou a ficar famosa no Restaurante Universitário, o pessoal tomando conhecimento; eu me lembro que depois de um almoço seguia todo mundo pro Diretório de Arquitetura ouvir música, música clássica, Bach, Chico Buarque, Nara Leão, recém começando esse povo todo aí, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, ainda um restinho de “bossa-nova”. (12 de junho de 2006).
Percebemos mais uma vez o espírito da diversidade musical que permeava o ambiente. A busca do novo sem desprezar o passado, olhar para referências múltiplas e fomentar uma nova estética. O Diretório de Arquitetura se tornou um centro convergente desse comum interesse até o final da década de 60. E Fausto enriquece a reconstituição desse ambiente com mais detalhes sobre como procediam:
Na época o Diretório recebia uma verba anual da Reitoria e nós traçamos uma política que a prioridade era comprar disco [...] a gente tinha praticamente um convênio com as lojas, quando chegava o cara ligava “chegou o Edu Lobo novo” então eu já mandava buscar e de noite convocava aquela turma, aí ia até de manhã as discussões sobre as letras [...]. Ficava todo mundo em função daquilo. (12 de junho de 2006).
Em seguida Fausto Nilo nos traça um roteiro que permite um mergulho etnográfico:
[...] a Arquitetura, CEU no horário do[81]... dali pro Prequé da Tupi, sabe onde é o Prequé? Naquela rua que sai em frente ao Conservatório, tinha o Bar Tupi[82] [...]. Aí, Balão Vermelho, Duque de Caxias embaixo do Jalcy, perto da Praça do Carmo na Duque de Caxias[83] e daí Beira Mar, no Anísio e às vezes Praça do Ferreira[84] também, aí era eu, o Rodger e o Augusto, Aderbal [...] Praça do Ferreira até de madrugada conversando com juiz de futebol, agiota, intelectual, comunista, entendeu? Era uma coisa assim [...] eu, o Augusto e o Rodger e o Aderbal, o Francis às vezes participava também [...]. (12 de junho de 2006).
Fausto nos fornece um verdadeiro mapa, nele nos aponta os principais pontos de encontro na cidade formando como que um sistema urbano que facilita a circulação desses sujeitos entre esses espaços.
Insistimos em colocar as falas dos sujeitos, ainda que redundantes, para fortalecermos e fundamentarmos com a visão dos próprios artistas essa idéia de um grupo, que se desenvolviam a partir de referências semelhantes, senão as mesmas em alguns casos. Mesmo entre os agentes que atuaram nesse sub-campo, alguns não se sentem confortáveis em afirmar que existia um grupo, contudo, a partir de suas próprias falas encontramos os dados necessários para afirmar que existia sim um grupo. Não formavam uma banda, nem gravaram um disco juntos, salvo o disco do I Festival de Música Aqui no Canto[85], mas são pessoas que durante aquele período se agrupavam e circulavam nos mesmos lugares. Nesse sentido trazemos uma declaração de Francis Vale que interpreta a importância da Arquitetura colocando em relevo o papel dos professores, assim com fez Augusto Pontes e Ednardo.
[...] existia um clima de liberdade maior na Escola de Arquitetura, por conta até do seu diretor, o Neudson Braga, que era um liberal, que gosta disso aí, da cultura e da liberdade dos estudantes; e o professor Liberal de Castro, que é um intelectual também que foi muito importante na formação não só dos estudantes da Arquitetura como até de outros estudantes de outras escolas que andavam lá; que é um historiador, um pesquisador. (Francis Vale, 1º de maio de 2006).
Ricardo Bezerra nomeia os mais assíduos: “Quem andava muito aqui mesmo era o Petrúcio, o Fagner, o Rodger, o Augusto, o Belchior, Cirino, a Mércia.” (6 de junho de 2006) É interessante que enquanto Bezerra identifica Belchior como um dos freqüentadores desse ambiente, Rodger afirma que “Belchior não foi freqüentador do Diretório de Arquitetura.” (12 de novembro de 2006) e o próprio Belchior faz questão de se distinguir dos demais. Filiar-se mais ou menos a um grupo de pessoas, pode mesmo guardar alguma intenção estratégica, contudo não temos dados suficientes para manter tal assertiva. Ademais existem outros freqüentadores que não foram citados por Bezerra. É no cruzamento das lembranças dos sujeitos que nos apresentam visões parciais, que encontramos elementos para uma visualização mais ampla dos espaços que compartilhavam.
Entre os sujeitos dessa pesquisa, Fausto Nilo e Ricardo Bezerra foram os estudantes de arquitetura, por isso mesmo em suas declarações os depoimentos de ambos descem a detalhes que reforçam a idéia de ser a Escola de Arquitetura um centro convergente dos então estudantes apaixonados por arte. Ricardo Bezerra, atualmente diretor da Escola de Arquitetura nos recebeu em sua sala, antes disso visitamos o histórico Centro Acadêmico, passamos pela cantina, transitamos pelos corredores em busca de darmos maior sentido às declarações que iríamos recolher. Destarte viajamos no tempo através das palavras de Ricardo Bezerra:
[...] aqui tinha umas épocas que era gozado, a gente fazia umas festas e ia buscar um piano lá no Conservatório, o Conservatório emprestava o piano, a gente trazia; teve uma época que ficou o piano ali na cantina, ficou bem um mês lá na cantina e aí era bom, chegava abria o piano em pleno horário do recreio. (6 de junho de 2006).
Importante notar a relação que mantinham com o Conservatório de Música Alberto Nepomuceno que já observamos anteriormente e a presença do piano. E Bezerra nos revela a intensidade das atividades estudantis e artísticas formadoras de gostos musicais:
[...] funcionava 24 horas literalmente, tinha gente que morava, eu dormia aí vários e vários dias, às vezes vários dias seguidos, eu passava às vezes dois, três dias sem botar os pés em casa, porque a gente passava o dia tendo aula e de noite tinha que fazer os trabalhos; eu não tinha prancheta em casa, logo no começo da Faculdade, então tinha que vir trabalhar aqui mesmo e esses ateliês aí tudo funcionavam 24 horas por dia [...] a gente dormia aqui na administração, tinha um sofá, tinha o beliche do Centro Acadêmico e a gente dormia em cima das pranchetas mesmo e no CA rolava música praticamente o dia todo [...]. (6 de junho de 2006).
Percebemos então a importância que o ambiente da Escola de Arquitetura proporcionava a esses estudantes. A própria natureza do curso ligada ao gosto artístico, o investimento que o Diretório de Arquitetura fez na formação de uma discoteca variada e atualizada, as posições políticas dos professores Neudson Braga e Liberal de Castro que permitiam toda aquela movimentação dentro da Escola. Esse conjunto de elementos apontados nas falas dos sujeitos suporta a idéia do caráter coletivo que habitava aquele período naquele ambiente.
Existem outros lugares, alguns que já foram apontados e que vamos nos aproximar, como os Institutos Básicos de Física, Matemática e Química.
Uma das peculiaridades dos “Institutos” era o convênio que mantinham com o “clube do cinema”, os estudantes recebiam filmes de arte, assistiam e debatiam; também faziam algumas apresentações musicais.
Augusto Pontes recorda: “[...] tinha o clube do cinema que funcionava nos Institutos Básicos, onde passavam filmes e comentavam.” (19 de maio de 2006). Pela sua narrativa na terceira pessoa podemos pensar que ele não participava muito das movimentações nesse local. Da mesma forma Cláudio Pereira nos informa que lá se “exibiam filmes, tinha o debate e tinha as pessoas muito interessantes, muito inteligentes.” (4 de junho de 2006). Pereira já havia feito referência à localização próxima entre os “Institutos” e a Arquitetura, agora Dedé Evangelista também associa: “se reunia muito no Diretório da Arquitetura e na Física. O pessoal, ia muito lá na Física. E é mais ou menos esses pontos onde a gente tinha contato.” (2 de junho de 2006). E Ednardo nos faz essa mesma relação com riqueza de detalhes.
[...] o pessoal com esta vontade de se reunir, ficava de um lado pro outro querendo saber o que estava acontecendo. A arquitetura dos Institutos Básicos, tipo caixotes, com ambientes definidos por salas de aula, corredores, e gabinetes de professores, também tinha pequena e barulhenta cantina pra estudantes, pouco convidativo a reuniões artísticas. Ao lado dos Institutos Básicos tinha um botequim[86] de balcão minúsculo, vez por outra a gente fugia pra lá, mas era precário, então é natural que as pessoas procurassem os ambientes da Escola de Arquitetura, que ficava bem em frente e tinha jardins, uma discoteca [...]. (10 de junho de 2006).
Da mesma forma que nos valemos da condição de estudantes de arquitetura de Fausto Nilo e Ricardo Bezerra para descermos a detalhes sobre o ambiente na Escola de Arquitetura, podemos também aproveitar o privilegiado ponto de vista de Ednardo. Assim, aprofundamos o caráter etnográfico de nosso estudo e encontramos através dos sujeitos um ambiente que de outra forma não poderíamos chegar nesse passado. Suas visões é como se fossem lupas para a nossa pesquisa. Obviamente, devemos estar atentos para as estratégias de posições que também se revelam ou se escondem nas falas, mas não podemos por isso deixar de aprofundar em nossa pesquisa aspectos relevantes que ampliam o poder explicativo da formação artística desse grupo.
Apropriemo-nos das declarações de Ednardo:
Entrei na faculdade de Engenharia Química em 1966 e saí em 1971. Nos Institutos Básicos, existia o clube de cinema do pessoal da Física e uns shows de bolso em pequenos lugares que não cheguei a freqüentar, mas sei que estavam por lá, Rodger Rogério, Dedé Evangelista, Flávio Torres, e outros, também tinha extensão no Cine Diogo para o pessoal mais ligado ao cinema com o Darcy, nos sábados, o Cinema de Artes. (10 de junho de 2006).
Francis Vale também lembra do cinema, das pequenas apresentações musicais e cita outros nomes que até então não tinham sido mencionados, além do Flávio Torres que foi lembrado acima por Ednardo.
Aí era o cinema, eles tinham um cine-clube [...] o Hélio Leite[87], o Heliomar, o Walmik, o Rodger, o Flávio[88]; esse pessoal organizava umas sessões de cinema, pegando filmes que vinham pra o clube de cinema [...]. E no intervalo, antes ou depois do cine, eles apresentavam shows, lá onde o Rodger cantou algumas vezes, o Ray Miranda, o Emanuel Barreto [...]. Essa coisa aí é mais ou menos o tempo, paralelo à época do Cactus. (1º de maio de 2006).
Surgem aí novos nomes para a nossa pesquisa que em outro estudo poderemos procurar seus contatos para enriquecer nosso trabalho com seus pontos de vistas. Por ora, os depoimentos recolhidos dão conta do que estamos demonstrando, trajetórias coincidentes com formações semelhantes que convergem para espaços comuns constituindo um sub-campo musical na cidade de Fortaleza que ficou conhecido como Pessoal do Ceará.
O CEU é outro ponto de convergência que assim como a Arquitetura e os Institutos Básicos eram, e ainda são, espaços localizados dentro da universidade, no bairro Benfica.
O CEU abrigava o Restaurante Universitário e uma quadra de esportes; nesse espaço houve importantes manifestações políticas e artísticas que marcaram esse período.
Cláudio Pereira mais uma vez nos fornece uma disposição geográfica interessante, que favorece o entendimento da importância desses espaços:
[...] todo o pessoal que participava do movimento estudantil almoçava no CEU, então se encontrava lá pra fazer discurso, pra fazer protesto, pra fazer passeata, tudo por ali, e era vizinho à Escola de Arquitetura e em frente à Filosofia, então era uma área muito efervescente. (4 de junho de 2006).
Ricardo Bezerra nos informa que acompanhou uma certa modificação do espaço, antes e após o seu ingresso na universidade:
[...] na minha cabeça, foi muito a estória do esporte, isso foi uma coisa até antes de eu ser universitário, eu ainda era adolescente e ia lá; 15, 16 anos; o CEU era o ponto esportivo da cidade, campeonatos de basquete [...] a gente vinha pra esses jogos, esse CEU era lotado, lotado, lotado. E depois tinha as tertúlias do CEU, eu nem freqüentei [...] quando eu entrei na universidade o CEU já era mais a coisa da política, tinha esses líderes políticos, inclusive o Genoíno era líder nessa época, os caras eram verdadeiros ídolos; o Fausto, um dos nossos principais líderes políticos, tinha o Nelson Serra, tinha o Prata que também fazia parte da política [...] eu tava ali assim andando ao largo disso, porque eu não entendia, não lia, não sabia. (6 de junho de 2006).
Portanto, o CEU, no período em que freqüentavam os “Institutos” e a Arquitetura, era um ponto de encontro por causa do Restaurante Universitário. Como reunia um grande número de estudantes, os líderes políticos aproveitavam a aglutinação para suas manifestações. Belchior registrou um importante encontro com os estudantes universitários do Piauí, quando ele conheceu o piauiense Jorge Mello – encontro esse que rendeu uma boa parceria profissional. Outros compositores piauienses se aproximariam dos cearenses em um futuro próximo como os irmãos Clodo, Clésio e Climério.
Augusto Pontes assevera a importância dos encontros nas residências em contraponto à importância dada aos bares. Sua leitura é bastante crítica, pois para ele a criação artística mesmo acontecia muito mais nas casas do que nos bares.
[...] a casa da dona Monavon[89], a casa da dona Lica[90], a casa do Dedé Evangelista. As pessoas têm a idéia de que isso foi produzido em bares, mas foi produzido nas casas, depois na casa do Rodger, também. Muito nas casas. Na casa do Antônio José[91]. Nessas casas se desenvolveu mais coisas do que no Anísio, do que no Balão Vermelho. (19 de maio de 2006).
Ao se referir aos bares Pontes retorna a enfatizar a importância da produção nas residências: “o Anísio era um local muito bom porque era na beira da praia, simples, Estoril também. Mas de dia na casa das famílias aconteceram mais coisas, as parcerias aconteceram nessas casas”.(19 de maio de 2006).
A casa do Dedé Evangelista era a mais freqüentada. No período em que esse grupo se encontrava, Evangelista já era formado, professor de física na UFC, e era casado. Então sua casa se tornou um ponto de encontro, pois enquanto nas outras casas não podiam ficar até mais tarde, na casa do Dedé Evangelista eles tinham essa liberdade. O próprio Evangelista afirma: “o pessoal era muito novo, moravam na casa dos seus pais. Eu já era casado, já tinha filho, era mais fácil de se reunir na minha casa porque eu era o dono da casa.” Outro atrativo era um piano que ele tinha em casa onde “o Petrúcio ia lá, tocava, o Ricardo.” (2 de junho de 2006). E Fagner confirma os encontros “na casa do Dedé que era quem podia receber.” (19 de junho de 2006).
Fausto mesmo não sendo freqüentador da residência de Dedé Evangelista reconhece os momentos relatados pelos demais e coaduna com a idéia apresentada por Augusto Pontes:
[...] eles iam muito pra casa do Dedé [...]. Esses encontros eram muito usados pra formar parcerias e pra mostrar música nova; [...] eu participei muito pouco porque nessa época foi quando eu entrei muito no movimento estudantil [...], ainda fiquei um pouco no ambiente do CEU e eles já estavam mais na música [...]. Mas a casa do Dedé foi um lugar que tinha essa convergência. (Fausto Nilo, 12 de junho de 2006).
A fala de Fausto Nilo confirma duas informações: a residência do letrista e físico Dedé Evangelista como ponto de encontro, e o CEU como ambiente de efervescência política utilizado pelos líderes estudantis.
Ednardo nos traz uma informação que vai de encontro com as assertivas de Augusto Pontes:
Raramente nos reuníamos em casas de famílias, mesmo que abertas a reuniões musicais, preferíamos espaços públicos. Augusto Pontes, era um dos primeiros a desestimular reuniões musicais familiares, para que não se tornassem domésticos saraus. (10 de junho de 2006).
Mesmo com um ponto de vista destoando dos demais, podemos perceber pelas outras declarações dos demais sujeitos que essas reuniões residenciais, especialmente na casa de Dedé Evangelista, tinham alguma relevância. Não estamos analisando graus de importância diferenciados entre os espaços, embora essa seja uma possibilidade de estudo. Estamos reconstituindo através das declarações ambientes na cidade de Fortaleza que serviam como ponto de encontro para os sujeitos. Com isso, também podemos chegar à conclusão que nem todos freqüentavam todos os lugares. Como havíamos afirmado no início desse capítulo, ao nos aproximarmos dos sujeitos, dos espaços e das suas relações as clivagens se revelam, contudo, as mesmas não anulam o aspecto coletivo que caracteriza o sub-campo musical que se define em relação a outros sub-campos musicais.
Entre os bares citados encontramos Balão Vermelho, Estoril e Anísio. Salvo Cláudio Pereira, os demais sujeitos não se identificam muito com o Balão Vermelho. Contudo observando aquele “mapa” montado por Fausto Nilo percebemos que ele fazia parte de uma certa rota boêmia. “[...] o Balão Vermelho era numa calçada, numa coisa estreita. As pessoas se encontravam muito lá, cantavam... Mas iam a outros locais; ou vinham de outros locais e iam para outros locais... Mas lá mesmo não faziam nada.” (Augusto Pontes, 19 de maio de 2006).
As palavras de Pontes revelam esse sentido de rota apontado por Fausto, mas também demonstram um certo distanciamento. Assim como Belchior: “eu freqüentei pouquíssimo. Sempre me pareceu de outra turma, de outra roda, era o pessoal talvez do cinema [...] Sabia que o Pereira ia lá.” (20 de junho de 2006).
Ednardo confirma as palavras de Belchior e Augusto, mas aponta alguns nomes que são importantes para a reconstituição desses espaços freqüentados com assiduidades diferentes entre os sujeitos:
[...] fui pouquíssimo, duas ou três vezes, e de passagem, porque lá não era um lugar propriamente musical, a avenida Duque de Caxias já tinha um tráfego barulhento e as cadeiras ficavam na estreita calçada, mas lá iam o pessoal de teatro, entre outros. Lembro de Augusto Pontes, Cláudio Pereira, Sérgio Pinheiro, Belchior, Antonio Carlos Coelho, Aderbal Freire-Filho, Zé Humberto, entre outros. (10 de junho de 2006).
Francis Vale também não se reconhece como freqüentador do bar da avenida Duque de Caxias: “eu também passei muito pouco por lá, porque nessa época eu tava muito envolvido na política.” (1º de maio de 2006).
E Ricardo Bezerra identifica o bar Balão Vermelho com Cláudio Pereira: “Um ponto de encontro mais do pessoal da Capela Cistina[92] do Cláudio Pereira. Que o Cláudio Pereira sempre transitou em vários grupos, mas ele tinha um grupo que era o Cláudio, o Antônio Carlos Coelho [...] o Sérgio Pinheiro [...].” (6 de junho de 2006).
Cláudio Pereira é o que realmente se identifica com o local e descreve o mesmo da seguinte forma:
[...] o Balão Vermelho era um bar muito bonito, muito bem transado, freqüentava o pessoal do cinema e lá era um lugar democrático, um espaço aberto, você chegava lá com violão cantava, tocava, fazia valer, sempre tinha um amigo, sempre tinha gente conhecida lá [...]. (4 de junho de 2006).
Cláudio também nos contou de uma prisão sua que aconteceu nesse bar e que foi testemunhada por Ednardo.
[...] teve um dia lá que eu ia preso, eu estava lá na mesa, na calçada, na rua, desceu dois rapazes, sentaram na minha mesa ali e eram dois policiais, aí disse: “Você que é o Cláudio Pereira?”; “Cláudio Roberto de Abreu Pereira. E você quem é?”; “Nós somos do DOPS, vamos levá-lo pra você prestar um esclarecimento para interesse da justiça.”; “O quê rapaz?” – aí o único que gritou, porque ninguém percebeu, foi o Ednardo que tava lá em cima, no mezanino: “Deixa nosso amigo aí cara!” Mas aí me levaram e eu fui preso. (4 de junho de 2006).
Estamos assim, visualizando as conexões geográficas e sociais em uma relação que favorece a dinâmica artística. Os sujeitos experimentam novas realidades e põem à prova suas criações. O movimento entre casas, universidade e bares é norteado por toda a história pessoal formadora do habitus, mas também é transformadora desse mesmo habitus. O gosto artístico, que é o aspecto específico que nós estamos focando, é constituído em meio a forças sociais e é na continuação histórica, individual e coletiva, que esse mesmo gosto atua modificando e sendo modificado.
Além do Balão Vermelho os sujeitos apontam o bar do Anísio como um dos pontos de encontros mais relevantes. Ao contrário do primeiro, esse é identificado por todos os sujeitos como um espaço comum.
Augusto Pontes manteve certa reserva com a mitificação dos acontecimentos nos bares que segundo ele, na verdade “há uma mentirificação. Não há mitificação. Mitificação é sobre algo que houve, nunca teve isso.” Mas ainda assim ele admite que o “Anísio era um bar muito freqüentado, como o Estoril também. As pessoas iam lá comemorar acontecimentos ou conversar sobre a vida.” (19 de maio de 2006).
Consideramos importante essa visão de Pontes, pois nos alerta para os possíveis exageros nos depoimentos a respeito do que ocorria nesses espaços. Contudo não podemos nos furtar à análise dos lugares que são mencionados recorrentemente.
Belchior nos informa de sua presença no Anísio:
[...] a minha freqüência no Anísio, podia dizer que era assíduo lá, mas que nunca fui muito de tocar, era mais conversando, nunca fui criativo assim de ir lá pra tocar violão, claro que eu tocava, mas sempre um certo pudor de me meter e eu não tocava muito também, eu preferia recitar alguns poemas. (20 de junho de 2006).
Belchior pontua sua maior ligação à palavra do que à linguagem musical, preferindo os poemas ao violão.
Cláudio Pereira mais uma vez nos traz uma interessante visão geográfica que nos permite melhor visualizar as disposições e motivações entre os espaços. Agora relacionando o Anísio ao Estoril: “o Anísio é que era o ponto bom, quando foi criado o interceptor oceânico, aí interditaram toda aquela área, aí a gente foi pro Estoril, já tinha uma turma que ia pro Estoril, mas ficou com peso mesmo quando foi juntar todo mundo.” (4 de junho de 2006).
Dedé Evangelista enfatiza o caráter coletivo criado afirmando que esse espaço “era um ponto de encontro muito movimentado, o bar do Anísio lá na Beira-Mar, todo mundo ia pra lá.” (2 de junho de 2006).
Ednardo apresenta, implicitamente, uma visão pedagógica. Um lugar de aprendizado e de preparação para o enfretamento de espaços outros, de maior complexidade: “No Bar do Anísio, nos anos chamados jocosamente pelo pessoal de ‘Últimos dias de Pompéia’ entre 68 e 71, acontece de mais importante a confirmação de várias parcerias musicais, entre debates e pequenas rusgas...” (10 de junho de 2006)
Sobre as rusgas a que se refere Ednardo é interessante notar que estamos enfatizando aspectos que demonstram a convergência do grupo, a formação de um gosto musical que os atraem para lugares em comum. Mas é sempre importante lembrar que as individualidades se mantêm e obviamente não é um quebra cabeça perfeito, em que tudo se encaixa em plena harmonia, pelo contrário, existem lutas por espaços, por legitimação da própria música ou do nome. Há um sentido de jogo, no qual os agentes são jogadores que estrategicamente constroem alianças, mas em outros momentos, também estrategicamente demarcam território. Augusto Pontes nos fornece uma interpretação interessante sobre a forma como olhamos para as relações entre os sujeitos: “[...] quando alguém ilumina, observa o fenômeno e ilumina, traz uma luz sobre isso, não põe em destaque idéia nenhuma, põe em destaque todas as idéias, ilumina, você ver tudo, o gênio e a porcaria.” (19 de maio de 2006).
Fagner que era o mais jovem de todos revela sua relação com os mais velhos: “[...] comecei a ser levado para o Anísio. Ai ficava ‘Raimundo Fagner você não é nada ainda’ e eu me achando o máximo porque tinha ganho o festival[93].”(19 de junho de 2006). Fagner foi pra Brasília no final do ano de 1968, e no ano seguinte foi morar na capital brasileira.
Fausto Nilo aponta para uma ampliação do grupo de amigos dizendo que juntava um pessoal que não era musical com o pessoal musical, assim como Ednardo também indica uma certa preparação para a vida profissional fora do Estado: “[...] esse pessoal fica ali no Anísio se encontrando e em 71 por uma coincidência, assim, vários vão pra Brasília.” (Fausto Nilo, 12 de junho de 2006).
Rodger em suas lembranças registra que Anísio e Estoril, no início, “eram recantos onde chegávamos, em pequeno grupo, e podíamos conversar e tocar, mas logo o sossego virou uma festa que durou anos.” (12 de novembro de 2006).
Ricardo Bezerra relaciona três espaços como que indicando uma rota: “Era a Arquitetura, o Anísio, o Estoril e no fim da noite mesmo, quando fechou tudo [...] Bezerra não lembra do nome, mas completa: era um lugar que a gente ia pra tomar um caldo.” Em seguida já começa a descrever a relação do grupo com o Estoril: “O Estoril era esporádico, mas era muito agradável o lugar, tinha os garçons que a gente já conhecia e o Estoril era depois do Anísio.” (6 de junho de 2006). O aspecto temporal de anterioridade do Anísio é confirmado nas palavras de Pereira: “o Anísio foi antes do Estoril.” (4 de junho de 2006).
Em relação ao Estoril, as declarações nos levam a crer que o espaço deve ter sido freqüentado mais pela geração seguinte. Encontramos um indício dessa transição de um espaço para o outro, mas também de uma geração para outra nas palavras de Ricardo Bezerra:
[...] o Anísio fechava relativamente cedo, não ia até de madrugada que ele trabalhava no dia seguinte, era a família, era a mulher que ficava ali, as filhas também transitavam um pouco, tinha o garçom, mas ele fechava; aí chegou o Estoril que na época era o fim do mundo [...]. Tinha o Alano[94] lá, que também fazia parte dessa turma [...]. (6 de junho de 2006).
E Fagner declara que passou pelo Estoril “depois, já nas boemias da volta.” (9 de junho de 2006). Com “boemias da volta” certamente ele se refere ao período após a migração para o eixo Rio-São Paulo, depois de ter assinado com uma gravadora e retornado com a vida profissional mais bem definida.
Consideramos que todas essas trajetórias, as apresentações nos espaços dentro da universidade com o GRUTA, o Cactus, as parcerias, as primeiras criações, o ambiente proporcionado pelas reuniões nos Institutos Básicos, na Arquitetura, nas residências, nos bares e a convivência com a efervescência política formam um currículo, no sentido de um percurso através do qual todos passam acumulando experiências, habilidades, conhecimentos, competências que serão necessárias para o desenvolvimento no universo musical mais amplo.
No fundo das teorias de currículo está, pois, uma questão de “identidade” ou de “subjetividade”. Se quisermos recorrer à etimologia da palavra “currículo”, que vem do latim “curriculum”, “pista de corrida”, podemos dizer que no curso dessa “corrida” que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos. (SILVA, 2003, p. 15).
Para ampliar o raio de ação dos seus trabalhos artísticos impunha-se a necessidade de serem vistos. É aí que os festivais entram com a função de dar visibilidade aos trabalhos, ainda amadores, desses estudantes universitários, levando-os aos programas de televisão locais e aos primeiros registros fonográficos.
CAPÍTULO 5
CONSAGRAÇÕES
[...] a arte e a vida se interligam por
uma rede de cumplicidades mútuas [...].
(Sérgio Paulo Rouanet)
5.1 Festivais
Os festivais, embora ligados ao público universitário não se resumiram exclusivamente a esse, começaram a ampliar o raio de ação dos artistas levando-os aos programas locais de televisão e ao disco, funcionando como a porta de saída da universidade e de entrada para o mercado fonográfico. Se as apresentações das músicas entre os amigos e nos eventos mais restritos à universidade já serviram de termômetro para medir a aceitação de suas criações, os festivais com um caráter competitivo e com maior visibilidade assumem essa função com mais eficácia ainda, pois com um público que não é só de amigos e frente a uma banca julgadora suas canções ganharam legitimidade com aceitação mais ampla chegando a despertar o interesse dos programas de rádio e televisão.
Conseguimos catalogar os seguintes eventos:
1. Festival produzido pelo GRUTA – 1967;
2. Festival da Sociedade Musical do Henrique Jorge – 1968;
3. I Festival de Música Popular Aqui no Canto – 1968;
4. I Festival Nordestino da Música Popular – 1969[95];
5. Festival de Música Jovem – 1969;
6. II Festival de Música Universitária da TV Tupy – 1971.
Augusto Pontes objetivamente aponta logo a grande vantagem de que “o festival prometia logo fazer um disco [...].” (19 de maio de 2006). Francis Vale também não tem dúvida de que “o festival é que abria o caminho”, e completa enfatizando que “é o festival que pá! Pintava o festival e tudo e proporcionava o LP.” (1º de maio de 2006). Logo, a busca era conseguir colocar suas músicas em circulação. Além de shows, festivais e apresentações, o disco era um forte aliado nessa tarefa, pois não somente era um suporte que transportava as obras musicais, mas também abria portas para outras apresentações, alimentando o mercado musical.
Para as empresas de comunicação existia a vantagem de trazer um novo público e aumentar a audiência. Não por acaso os dois festivais de maior visibilidade local foram o I Festival de Música Popular Aqui no Canto realizado pela Rádio Assunção e o Festival Nordestino da Música Popular que foi promovido pela Rede Tupy, uma emissora dos Diários Associados do maior empreendedor em comunicação da época, Assis Chateaubriand, que estava no ápice de seu desenvolvimento com emissoras de rádio e televisão em todo o Brasil.
O GRUTA teve o grande mérito de criar muitas movimentações e, segundo Rodger, tudo era motivo pra festa, qualquer reunião se tornava um evento. Cláudio Pereira era quem capitaneava essa nau que reunia grande parte de estudantes interessados em arte e chegou a produzir um festival.
Rodger detalha sua participação.
[...] O GRUTA também realizou um festival importante, em 1967. Era final do ano, cheguei de S.Paulo, onde conclui a graduação em Física. A tarde caía e seguindo as notícias captadas fui à quadra do SESC onde se passava o som para a semi-final do Festival do GRUTA. Ali concorria "Mundo-Mudá" (Rodger/Augusto Pontes). Wilson Cirino me passou o violão e acompanhei minha música naquela noite e na grande final no José de Alencar, onde tiramos o 2º lugar. A Mércia Pinto ficou com o 1º, e Petrúcio/Brandão com o 3º lugar. (12 de fevereiro de 2006).
O Festival da Sociedade Musical do Henrique Jorge apresentado no Theatro José de Alencar foi onde Fagner ganhou o primeiro lugar com a música Nada sou em parceria com Marcos Francisco. No mesmo ano, em dezembro, Fagner também participou do I Festival de Música Popular Aqui no Canto, ocorrido no auditório da Rádio Assunção. Conforme Ednardo, o nome Aqui no Canto foi sugerido por Augusto Pontes partindo do duplo sentido da expressão que podia se referir à Rádio Assunção cuja sintonia se localizava em uma das extremidades do dial, ou seja, no canto do dial e também de trazer o sentido de ser um evento produzido no próprio lugar, já que segundo a visão de Pontes “os festivais foi uma invenção nossa pra poder mostrar o nosso trabalho [...].” (19 de maio de 2006). O evento promovido pela Rádio Assunção foi produzido pelo ator e radialista Aderbal Freire Filho.
Vamos mergulhar nas lembranças dos artistas. Belchior, que não participou reconhece o momento histórico que representou o evento:
O “Festival de Música Aqui no Canto” teve até um disco, tinha um super cantor que era super amigo do Rodger que era o Ray Miranda[96], Marçal tocando piano, eu não participei desse festival que eu acho que foi um dos mais importantes porque teve direção artística feita pela Rádio Assunção, Aderbal Júnior escreveu a contracapa do disco, uma coisa revolucionária, eu tenho nostalgia de não ter participado daquele festival, eu acho que ali é que começa tudo mesmo do ponto de vista da agremiação das pessoas e também uma amostragem de alto nível ali, eu mesmo sei de uma música daquela que é ade, por exemplo, o encontro desses jovens universitários com os professores e estudantes do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, que compuseram a bancas de jurados e também foi o momento de algumas pessoas um pouco mais novas se entrosarem, como no caso da Tânia Cabral que fez seu curso universitário em Minas Gerais e quando voltou se aproximou do grupo atravância desse acontecimento. Não concordamos porque o que estamos demonstrando é que existe na verdade um processo histórico que não ocorre de uma hora pra outra. Contudo, existem alguns marcos importantes que podem servir de referência de análise para o fenômeno, como por exemplo, esse festival que reuniu um número muito grande de pessoas e chegou a gravar o primeiro disco coletivo.
Cláudio Pereira também aponta a função reveladora do festival:
[...] muita gente boa participava, teve uma coisa muito marcante do Aderbal Freire Filho, o Aderbal Jr., que ele tava na Rádio Assunção Cearense, que foi o “Festival de Música Aqui no Canto”, foi ali onde apareceu, desabrochou Ricardo Bezerra e outros [...]. (4 de junho de 2006).
Outra função importante do festival é de servir como um encontro entre pessoas de outras áreas musicais que não somente a universidade, por exemplo, o encontro desses jovens universitários com os professores e estudantes do Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, que compuseram a bancas de jurados e também foi o momento de algumas pessoas um pouco mais novas se entrosarem, como no caso da Tânia Cabral que fez seu curso universitário em Minas Gerais e quando voltou se aproximou do grupo através do festival. Assim relata Tânia: “Eu não conhecia nada. Eu fui entrando, fui conhecendo as pessoas durante o Festival do Náutico.” (18 de julho de 2006). Tânia se refere ao I Festival Nordestino da Música Popular, houve duas etapas classificatórias no Náutico Atlético Clube e a final foi em Recife. Os finalistas gravaram um disco que registrou quatro músicas cearenses: Bai bai baião[98], de Rodger e Dedé Evangelista[99], classificada em segundo lugar; Caminhada, de Lauro Benevides, com o mesmo, Conceição Benevides e Regina Castro; Boca de forno, de Tânia Cabral[100], interpretada por Conceição Benevides; e Caminhante, de Frederico Guilherme de Matos Pereira, interpretada por Ronaldo.
Esse festival ampliou ainda mais o público, pois se o I Festival de Música Popular Aqui no Canto aglutinou muita gente e gravou um disco, o I Festival Nordestino da Música Popular além do disco, reuniu, ao lado dos cearenses compositores e intérpretes de outros estados – como Bahia e Pernambuco – e, como lembra Dedé Evangelista, foi “um festival inclusive que foi transmitido nacionalmente pela Tupy. Aí foi um bom momento, mostrou já um bocado de gente que ficou conhecendo o pessoal a partir daí.” (2 de junho de 2006).
O I Festival Nordestino da Música Popular começou a ampliar o público, colocou os artistas na televisão e o caminho que se apresentava para os que queriam se dedicar à música popular era sair do Ceará e desenvolver suas ações em centros nacionais difusores de cultura com outras possibilidades de pôr em circulação suas músicas. E uma via de acesso para essas outras regiões era a participação em festivais. O Festival Nordestino já os levou para Recife e os colocou em contato com artistas de outros estados, contudo as primeiras etapas eliminatórias ainda foram em casa; e ademais, Pernambuco é um vizinho onde o ambiente cultural é muito semelhante, mesmo com um pouco mais de força difusora, não atingia o poder das grandes cidades como Brasília, Rio de janeiro e São Paulo.
A primeira aventura musical para um Estado mais distante foi a de Fagner em 1969. Participando de um festival em Brasília promovido na UnB – onde ele ingressara como estudante de Arquitetura pelo CEUB[101]. Por ironia do destino é por causa desse festival que Fagner decide largar o curso superior ainda no primeiro ano e se dedicar exclusivamente à música. Os motivos que o levaram a tal decisão foram convincentes, pois ganhou cinco prêmios com as músicas Mucuripe, Manera fru fru manera[102] e Cavalo Ferro a primeira em parceria com Belchior e as duas últimas em parceria com Ricardo Bezerra, além de melhor intérprete e melhor arranjo[103].
Conforme Dedé Evangelista “Fagner ficou conhecido a partir daquele momento, tanto assim que convidaram ele pra participar do disco do Pasquim.” (2 de junho de 2006). Esse disco era um compacto com uma música de cada lado. O mesmo foi dividido com o já consagrado Caetano Veloso que gravou Asa Branca de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira e o cantor cearense fez o primeiro registro de sua parceria com Belchior, Mucuripe.
Fagner traduz com suas palavras a importância de sua participação nesse acontecimento em Brasília, no Festival de Música Jovem.
Isso já era uma motivação também. Já era sair daqui, já era viajar, já tinha a história de cantar num festival lá. Teve a sua importância, pra mim teve importância. Primeiro que eu fui porque ganhei o festival. Tá entendendo? E já fui incluído no roteiro musical [...]. (19 de junho de 2006).
As palavras do cantor demonstram que naquele momento havia um forte desejo de sair do Ceará e entrar no circuito musical nacional, logo a universidade se apresenta como viabilizadora de seu projeto artístico inicial.
E concluindo os festivais que marcaram essa geração, o derradeiro é apontado como um marco ainda maior pela visibilidade que deu ao Ceará através de Belchior. Fausto Nilo rememorando os acontecimentos mais importantes da geração naquele período que inclui os últimos anos da década de 60 e os primeiros da década de 70 lembra: “Belchior no Rio de Janeiro, tinha um festival universitário que ele ganhou com ‘Na hora do Almoço’ foi outra coisa importante [...].” (12 de junho de 2006).
Francis Vale considera esse momento como o mais marcante para toda geração que buscava notoriedade musical, pois ganhar um festival nacional e ainda mais no Rio de Janeiro que acolhia a maior parte dos artistas mais admirados do Brasil traduz uma vitória não só de Belchior, mas também de seus pares que vinham na mesma labuta. Vejamos a opinião de Vale:
Eu acho que o momento que chamou mais atenção, na minha maneira de ver, desse grupo, nacionalmente, foi quando o Belchior ganhou o festival com “Hora do almoço” em 71, porque teve uma repercussão nacional, festival no Rio de Janeiro; Rio de Janeiro é aquela coisa, então eu acho que esse é o momento que chamou a atenção. Um compositor cearense no festival nacional, eu penso, posso até tá enganado, você tem outros momentos. É, acho que é esse o momento. (1º de maio de 2006).
E o próprio Belchior nos auxilia na reconstrução desse cenário musical com suas impressões acerca da sua vitória no Rio de Janeiro:
Aí eu ganhei o “Festival Universitário” e na verdade o “Festival Universitário”, eu acho que além da qualidade da música “Na hora do almoço”, provou, assim, sei lá, pro Brasil todo, naquela hora, que havia um grupo, amostrou, deu uma amostra de que havia um conjunto de pessoas que no Ceará estava fazendo música e música de qualidade e que podia se ombrear com tudo que estava acontecendo no Brasil a ponto de uma música dessas tirar o 1º lugar no festival; que anteriormente tinha sido ganho por um Gonzaguinha, pelo Rui Mauriti, intérpretes da qualidade de Clara Nunes, Beth Carvalho, Lúcio Alves, Taiguara, todo esse pessoal. O fato de ganhar o festival com aquela música comprovou isso, sabe, que havia realmente uma música popular-brasileira-nordestina-cearense-contemporânea, que podia estar nesse roldão das coisas de uma forma competitiva. (20 de junho de 2006).
Belchior revela toda a clareza de estar dentro de um espaço competitivo e a importância de chegar a um lugar onde intérpretes consagrados também chegaram. Sua leitura sobre o evento confirma a existência de um sub-campo musical cearense que busca se afirmar no campo musical nacional legitimado e do capital simbólico que estava conseguindo se apropriar.
A universidade os levou aos festivais e esses abriram portas para os discos e para a televisão, onde encontram importantes incentivos para se aventurarem em outros estados brasileiros[104].
5.2 Televisão
A universidade fazia parte de um projeto nacional de urbanização o que explica a busca de vários jovens de cidades do interior pelo ensino superior. Os investimentos no desenvolvimento nacional que vinham desde JK elevaram a auto-estima dos brasileiros. Os estudantes universitários alimentados pelas ondas de otimismo e com o senso crítico aguçado no âmbito acadêmico, ao verem seus direitos cerceados pelo golpe militar não vacilaram em reagir. As manifestações de caráter artístico somadas a toda a efervescência política encontraram na universidade um público ávido por mudanças, por uma nova maneira de se comunicar, de se relacionar. Dessa forma, as novas linguagens estéticas eram bem-vindas. Porém as criações artísticas transcendiam às questões especificamente políticas e necessitava de um público maior, foi aí que os festivais cumpriram a função de uma primeira ampliação de público.
As empresas de comunicação que vivem em função de audiência captaram essa movimentação e não só apoiaram os festivais como trouxeram os artistas para os seus programas de televisão.
Aqui no Ceará encontramos o registro de três desses programas, o Show do Mercantil apresentado pelo comunicador Augusto Borges, Porque Hoje é Sábado e Gente que a Gente Gosta[105] produzidos por Gonzaga Vasconcelos, todos programas de auditório apresentados “ao vivo”.
Augusto Pontes nos informa que chegou a existir um aprendizado intencional na televisão: “realizaram um curso, na casa do Dedé com o Edson Távora e outros cursos sobre música. Teve um tempo na TV Ceará sobre linguagem de televisão, com João Ramos e Guilherme Neto.” (19 de maio de 2006).
Belchior deixa clara essa aproximação com a televisão através dos festivais.
O Rodger foi lá, participou do festival e acho que ganhou com a música “Bye, bye baião”[106] e aquilo criou um “frisson” super bacana e eu me lembro de ter um primeiro programa de televisão, que eu participei [...] foi em comemoração a essa vitória do Rodger. (20 de junho de 2006).
Através desses programas de televisão os artistas têm suas primeiras experiências com um espaço de trabalho mais complexo na área da comunicação. O contato com a produção e mesmo, para alguns, o trabalho como produtor musical, a experiência com as câmeras e toda a parafernália de equipamentos necessários para a veiculação de programa de televisão e o contato com artistas consagrados formavam um conjunto de experiências que vinham modificando o habitus e no que se refere à formação musical não se deteve restritamente à criação artística, mas também se ampliou para outras habilidades necessárias para o desenvolvimento dentro da indústria cultural.
Fagner nos fala do grau de importância no sentido do aprendizado.
Pra gente foi super importante. Porque a gente tava começando numa coisa e já ter um veículo pra gente poder expor essas coisas. Já poder ter contato com câmera, contato com saber que tava sendo visto. Foi fundamental. Se a gente não tivesse tido aquilo talvez tivesse se inibido pra muitas coisas. Aquilo tirou a nossa inibição. Contato com a máquina, contato com a televisão. Já começamos a conviver com a realidade que ia ser futura. (19 de junho de 2006).
Trabalharam como produtores nesses programas Belchior, Ednardo, Jorge Melo e Ricardo Bezerra. Mas todos se apresentaram, o público ainda não se identificava imediatamente com suas músicas, os artistas locais ficavam entre as atrações nacionais. Contudo, como os programas eram transmitidos para cidades do interior e, segundo as declarações dos nossos entrevistados, chegaram a estados vizinhos como Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba, em seus shows nas cidades desses estados já existiam pessoas que conheciam suas músicas e formavam platéias.
A aceitação do público não foi imediata. Ricardo Bezerra nos conta que “quando a gente entrava, aquele público ali ficava de braço cruzado olhando como se tivesse entrado assim, sei lá, os contínuos da televisão [...] parecia que não tinha acontecido nada.” (6 de junho de 2006).
Mas a importância da televisão para a amplificação de seus trabalhos é percebida como fundamental. Ednardo observa o aumento do público que tinha contato com seus trabalhos no âmbito universitário para aquele outro que viria somar através da televisão.
[...] sem dúvida a televisão (TV Ceará – Canal 2), Programas Show do Mercantil – Augusto Borges –, Porque Hoje é Sábado – Gonzaga Vasconcelos –capitaneados por João Ramos; Os Festivais Nordestinos da Música Brasileira – TV Tupi – Rádios e Diários Associados, e outros eventos tiveram maior amplitude, nos colocando em contato com imenso público. Este fato, inexistente anteriormente[107], chamou a atenção de todos os interessados em música e cultura. (10 de junho de 2006).
Conforme as entrevistas, alguns profissionais da televisão foram marcantes para o desenvolvimento dos mesmos na televisão cearense. Consideramos importante o registro desses nomes de forma a nos aproximarmos da realidade vivida naquele momento. São eles João Ramos, Guilherme Neto, Ary Sherlok, Neyde Maia, Gonzaga Vasconcelos, Paulo e Narcélio Lima Verde, Wilson Ibiapina, Mauro Coutinho, Audifax Rios, Polion Lemos. Ednardo também registra os nomes de Renato Aragão e Emiliano Queiroz. Além dos já mencionados Augusto Borges e Gonzaga Vasconcelos.
O aprender na prática, realizando e também vendo como se faz é um aspecto que estamos colocando em relevo desde a iniciação musical dos sujeitos dessa pesquisa. Os programas de televisão também favoreceram essa forma de aprendizagem visto que puseram toda a sua formação até aquele momento em contato com uma nova realidade na qual o habitus influencia e concomitantemente é influenciado. Esse sentido formativo é percebido nas palavras de Belchior:
[...] houve um contato muito grande de nós aqui com os artistas chamados do sul que vinham se apresentar no programa. Nesse programa se apresentaram Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Clara Nunes, Agostinho Santos, Lúcio Alves, Jorge Ben, Wanderley Cardoso, Jerry Adriane, Roberto Carlos, todas as pessoas de uma maneira geral que estavam nos diversos setores da música passaram pelo programa [...]. (20 de junho de 2006).
E Belchior completa o sentido de aprendizagem de seus pares: “a patota toda passou por ali numa experiência, vamos dizer assim, formal dessa coisa de produzir televisão, trabalhar na televisa.” (20 de junho de 2006).
Através dos dados fornecidos pelos depoimentos dos artistas podemos afirmar que houve dois aspectos relevantes no contato com a televisão em âmbito local: a aprendizagem e a divulgação de suas obras, encorajando-os para vôos mais altos.
As experiências dos artistas com a televisão de forma mais direta, como integrantes de uma emissora se estendem até os anos 1972 e 1973, anos que coincidem com a gravação e lançamento, respectivamente, do disco-marco Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem.
Já decididos a seguir seriamente na carreira musical com a experiência que acumularam durante a trajetória até aquele momento através dos eventos universitários, festivais e programas de televisão ainda no Ceará, Belchior, Ednardo, Rodger e Téti foram convidados para participar do programa “Proposta” na TV Cultura de São Paulo sob a direção e produção do jornalista Júlio Lerner. O programa recebia personalidades da literatura, das artes plásticas, do teatro e os três compositores[108] em conversa prévia com os entrevistados compunham músicas que ilustravam o programa. O Pessoal do Ceará participou de cinco programas entre julho e agosto de 1972.
Em 1973 participam do programa “Mixturação” produzido pelo radialista Walter Silva, que já tinha a experiência de ter produzido nomes como Chico Buarque, Elis Regina, Toquinho, Taiguara, Jair Rodrigues, Marcos Valle, Jongo Trio, Silvia Maria, Adilson Godoy, Bossa Jazz Trio, César Roldão Vieira, Renato Teixeira conforme registro feito pelo jornalista Maurício Kubrusly no Jornal da Tarde[109] de 18 de abril de 1973. O programa reuniu no Teatro Record – Augusta um grande número de artistas; além dos cearenses citados, também participaram dois alencarinos, Pekim[110] e Cirino; ao lado desses, alguns nomes que se consagraram e outros que não atingiram projeção nacional. São eles: Maranhão, Simone, Secos & Molhados, Grupo Capote, Marcos Vinícius e Anáh, Tião Motorista, Tom Graça e Carlos Costa, Gilson de Sousa, Maria Cecília, M. Leme, Hareton Salvanini e Octeto. O “Mixturação” foi ao ar pela TV Record, canal 7, em São Paulo, e Rodger nos informa que ficou no ar durante quase seis meses.
Verificamos então que a viagem para os centros de irradiação da cultura nacional, os primeiros contatos com emissoras de televisão e a gravação dos discos acontecem paralelamente.
5.3 Discos e diáspora
Os primeiros registros fonográficos dessa geração foram através dos festivais. Inaugurando a fase das gravações veio o long play lançado em 1969 do I Festival de Música Popular Aqui. O festival ocorreu em dezembro de 1968 e o registro foi realizado nos estúdios da Orgacine – Fortaleza, no edifício seguradora brasileira, 8º andar. O disco foi fabricado pela Cia. Industrial de Discos no Rio de Janeiro. Na contracapa encontramos a ficha técnica que registra que os arranjos foram do músico Marçal que também executou o piano ao lado de Josué no violão, Barbosa na bateria e Edson no baixo. A capa do disco foi uma criação de Antônio José Brandão e a direção de Aderbal Jr.
Figura 1 – Capa do disco I Festival de Música Popular Aqui[111].
Em seguida veio o disco gerado a partir do I Festival Nordestino da Música Popular promovido pelos Diários e Emissoras Associados do Norte e Nordeste, esse também foi prensado em 1969 através da Fábrica de Discos Rosenblit Ltda. Em um texto, que não está assinado, escrito na contracapa, encontramos o nome de Augusto Borges, assim como de outros profissionais da televisão, citado como um dos incentivadores do evento. Vejamos:
Registra-se aqui um reconhecimento todo especial ao esforço e persistência de Antiógenes Tavares e Severino Barbosa, da TV Rádio Clube do Recife; Rômulo Siqueira e Augusto Borges, da TV Ceará; Mário Augusto e Jorge José, da TV Itapoan, que lutaram acima de todas as forças pela realização do festival.
Figura 2 – Capa do disco I Festival Nordestino da Música Popular.
E antes dos primeiros LP serem gravados e produzidos no sudeste, em 1971, Fagner e Cirino registraram em um compacto as músicas A nova conquista, de Fagner e Ricardo Bezerra de um lado, e de outro a música Copa Luz, de Cirino e Sérgio Costa pela RGE.
Figura 3 – Disco lançado em 1971.
Existe ainda um segundo compacto gravado em 1972 que deu uma projeção muito maior para o nome de Fagner, foi o chamado Disco de bolso do Pasquim. Pasquim era uma edição impressa produzida por jornalistas de esquerda que veiculavam as idéias consideradas de vanguarda naquele período[112]. A idéia de lançar os “discos de bolso” foi do produtor Eduardo Athayde e do cantor e compositor Sérgio Ricardo em parceria com os editores do ''Pasquim''[113]. O objetivo era reunir um artista consagrado com um estreante, no primeiro número o “novato” era João Bosco ao lado de Tom Jobim e o segundo registrou de um lado Caetano Veloso cantando A volta da Asa Branca de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira e do outro lado do compacto Fagner cantando sua parceria com Belchior, Mucuripe.
Figura 4 – Disco lançado em 1972.
A boa recepção que Fagner obteve com Mucuripe chegou ao conhecimento da consagrada Elis Regina que gravou a música no mesmo ano pela Phonogram. O reconhecimento ao artista cearense rendeu-lhe um contrato com a gravadora Philips em 1972, quando foi convidado para registrar mais quatro músicas em um compacto: de um lado Fim do mundo em parceria com Fausto Nilo, e Cavalo Ferro em parceria com Ricardo Bezerra, de outro lado Quatro graus de latitude em parceria com Dedé Evangelista, e Amém, amém (letra e música de Fagner).
Figura 5 – Disco lançado em 1972.
Após esse compacto já estava garantido seu primeiro long play que seria lançado em 1973.
Como estamos percebendo, as viagens para outros estados, nesse momento, já tinham começado e o senso de profissionalismo vinha sendo aguçado cada vez mais. Fagner foi pra Brasília, de lá para o Rio de Janeiro e depois para São Paulo. Belchior largou a faculdade de medicina e foi para o Rio de Janeiro já com o projeto do festival em mente, e obteve grande sucesso; em seguida também foi para São Paulo. Wilson Ibiapina foi para o Rio de Janeiro e depois para Brasília. Augusto Pontes, Dedé Evangelista, Fausto Nilo, Yeda Estergilda, Mércia Pinto, Rodger e Téti foram para Brasília.
Rodger e Téti seguiram para São Paulo onde se encontram com Belchior e Ednardo. Fausto voltou para Fortaleza seguindo posteriormente para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro. Dedé retomou suas atividades em Fortaleza. Dessa forma, os artistas cearenses ficam circulando entre Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, conforme as oportunidades[114].
Embora não existindo uma viagem só, que viesse marcar o ingresso desses artistas no circuito musical brasileiro, seus projetos artísticos convergem no mesmo período para os centros culturais do país e a primeira gravação foi realizada em São Paulo.
Walter Silva conhece o Pessoal do Ceará no programa “Proposta” da TV cultura de São Paulo, onde o produtor foi entrevistado em 17 de julho de 1972. Logo os chamou para gravar um disco coletivo, os que aderiram ao projeto foram Ednardo, Téti e Rodger. Segundo as declarações foi o produtor, também conhecido como “Pica-Pau” que escolheu o nome Pessoal do Ceará, contudo em algumas entrevistas os sujeitos informam que a expressão relacionada ao grupo cearense já era utilizada por alunos da USP, por ocasião de algumas apresentações que fizeram no restaurante dessa universidade; já o próprio Walter Silva diz ter ouvido a expressão ser utilizada pelo jornalista Júlio Lerner por ocasião do programa de televisão que dirigia com a participação desses artistas cearenses. As informações são muito díspares a esse respeito, a única certeza é que não foi uma escolha dos próprios sujeitos. Esse aspecto será motivo de estudo mais aprofundado no trabalho que pretendemos desenvolver no doutorado quando pesquisaremos os deslocamentos desses artistas para centro difusores cada vez mais complexos e as estratégias utilizadas no jogo de forças frente à indústria cultural – visto que o poder de nomear ou ser nomeado constitui como um bom mote para analisarmos as relações entre os artistas e a máquina industrial da cultura.
Para esse trabalho o relevante é perceber que, seja o produtor Walter Silva ou os estudantes da USP, o fato é que essas pessoas os viram como um grupo de artistas que chegavam do Ceará. Sabendo de suas trajetórias, parcerias, referências comuns – como vimos durante o trabalho –, e nos colocando no lugar de um paulista ou de um carioca é possível entender porque eles os percebiam como um grupo. Ainda que com trabalhos individuais e com características também ímpares, o percurso foi semelhante, compartilhando os mesmos ambientes e, muitas vezes, servindo de referências mútuas. O que sustenta a idéia de que existia em Fortaleza um sub-campo musical. O que os estudantes universitários, artistas, produtores e jornalistas do sudeste perceberam foi essa relativa unidade formada na capital do Ceará e por isso chamaram esse grupo de Pessoal do Ceará. O nome foi usado por Walter Silva no disco que teve o título Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem e como subtítulo o nome que “pegaria” na mídia: Pessoal do Ceará. Insistimos ainda nessa idéia da configuração coletiva registrando que ainda que só reunisse três intérpretes somaram-se no disco pelo menos mais cinco artistas na qualidade de compositores: Augusto Pontes, Dedé Evangelista, Fagner, Ricardo Bezerra e Tânia Cabral.
Esse disco, embora sendo apenas um vinil, foi lançado com o formato de álbum. Na parte interna da capa existem depoimentos de Ednardo, Rodger e Walter Silva que também apontam a formação de um projeto coletivo e trazem vários nomes ligados mais ou menos diretamente a esse trabalho. A saber: Aderbal Jr., José Humberto, B. de Paiva, Carlos Paiva, João Falcão, Haroldo Serra, Yeda Estergilda, Brandão, Braguinha, Rodger, Edson, Petrúcio, Dedé, Augusto Pontes, Fausto Nilo, Pepe, Cláudio Pereira, Antônio Carlos, Sérgio Pinheiro, Luiz Fiúza, Ricardo Bezerra, Lauro Benevides, César Russeau, Pretextato, Gustavinho, Tânia Araújo, Xica, Alba, Olga, Tetty, Manoel Ferreira, Ray Miranda, Amelinha, Fatinha e Vavá, Cirino, Fagner, Jorge Mello, Belchior, Sérgio Costa, Augusto Borges, João Ramos, Miguel da Flauta, Descartes, Gonzaga Vasconcelos, Neide Maia, Mauro Coutinho, Ivan Prudêncio, Guilherme Netto (Guiba), Paulo Lima Verde.
Walter Silva escreveu na contracapa e revelou o sentido de conjunto reconhecendo as individualidades: “O Pessoal do Ceará, não é um conjunto vocal. É um grupo de novos mensageiros que, cada um à sua maneira, dá o recado mais importante desta temporada.”
O disco foi gravado no Estúdio Prova, em novembro de 1972, sob a batuta do maestro, cantor e compositor José Hareton Salvanini, o mesmo que participou do programa da TV Record “Mixturação”. O “bolachão” – como também são conhecidos os discos de vinil – foi fabricado pela empresa Gravações Elétricas S/A (Discos Continental), e lançado em 1973. Vejamos a capa e contracapa do disco:
Figura 6 – Capa e contracapa do disco Meu corpo minha embalagem todo gasto na vigem.
E a parte interna das capas:
Figura 7 – Parte interna das capas do disco Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem.[115]
Esse foi o primeiro long play registrado por essa geração junto a uma gravadora de grande porte, mas outros projetos já estavam caminhando. Fagner já estava contratado pela Philips e lançou em 1973 o Manera fru fru manera. A coordenação de produção foi de Roberto Menescal, a direção de produção de Paulinho Tapajós, direção musical do próprio Fagner e os arranjos de Luiz Cláudio e Ivan Lins. Seu primeiro disco contou com a participação de Nara Leão, Naná Vasconcelos e de um baixista inglês trazido por Gilberto Gil, chamado Bruce Henry. Percebemos que Fagner abre uma rede de parcerias que será uma de suas marcas durante sua carreira assim como a capacidade de liderança que se apresenta na direção musical de sua estréia em LP.
Figura 8 – Disco lançado em 1973.
Em 1974 Belchior grava pela Continental o seu primeiro disco, A palo seco; Ednardo lança O romance do pavão mysteriozo, e Téti compartilha com Rodger o disco Chão Sagrado – esses dois pela gravadora RCA. Vejamos as imagens das capas:
Figura 9 – Disco A palo seco, de Belchior, 1974.
Figura 10 – Disco O romance do pavão mysteriozo, de Ednardo,
Figura 11 – Disco Chão Sagrado, de Téti e Rodger, 1974.
Continuam gravando com freqüência, durante a década de 70, Belchior, Ednardo e Fagner. Os artistas vão escolhendo estratégias diferenciadas para se manter no circuito musical. No final desse mesmo decênio existem dois outros projetos coletivos: o Massafeira e o Soro, ambos de grande relevância para o desenvolvimento da música cearense. A devida análise desses trabalhos poderá ser desenvolvida na pesquisa que pretendemos aprofundar no doutorado.
Figura 12 – Capa do disco Massafeira.
Figura 13 – Capa do disco Soro.
Entendendo que as modificações em suas trajetórias acontecem de forma cada vez mais veloz e complexa consideramos suficiente manter nossa análise até 1974 com os primeiros registros fonográficos junto a gravadoras de grande porte, visto que esse estudo já nos fornece os dados necessários para as nossas conclusões neste trabalho.

CAPÍTULO 6
CONCLUSÃO: CHEGAMOS A UM HABITUS MUSICAL
Conhecer é ato que mobiliza
o ser humano por inteiro.
(Pimenta e Anastasiou)
As inquietações de professor de música nos mostraram que para entender a formação do gosto faz-se necessário mergulhar no universo do outro, entender porque que cada um pensa, sente e age de maneira a parecer natural, como se nascessem com as percepções que têm.
Encontramos nas trajetórias dos artistas cearenses que ficaram conhecidos como Pessoal do Ceará diversos aspectos formativos coincidentes. Assim como ocorrem com os alunos de música, as opções estéticas, os estilos artísticos a que se filiam os sujeitos são tomados como espontâneos em oposição às convenções sociais. O ambiente escolar, a família e os meios de comunicação constituem um sistema formativo que escamoteia a artificialidade das criações, o truísmo das relações impede a visão de como são forjados os gostos.
Gosto na qualidade de categoria estética é algo difuso, contudo sua existência não nasce como uma planta nativa da caatinga, por exemplo. Nosso esforço então foi no sentido de desocultar características do processo de formação do mesmo. O gosto pode se dirigir a toda e qualquer coisa, porém nosso interesse foi no gosto relacionado à música.
A formação é indissociável do processo e esse ocorre no meio social. A individualidade é construída na coletividade; é ímpar, se dá de forma peculiar, mas traz características do meio, da época, portanto está circunscrita historicamente. As formas de apreensão da realidade trazem um conjunto de disposições que Bourdieu denominou habitus. A opção por determinados repertórios musicais é feita a partir da forma como cada um percebe a música, encontrando na mesma, características que reverberam ou causam estranheza em si. Existem, assim, conexões positivas ou negativas entre a obra de arte e o ouvinte. Essas estruturas perceptivas que permitem acessar a gramática encerrada em uma peça, por exemplo, e se identificar ou não com a mesma, é que passamos a chamar de habitus musical.
O habitus é formado durante todo o percurso da vida de cada um, e funciona como uma lente que permite determinados tipos de leituras da realidade social.
Focalizamos nosso interesse nas percepções musicais que levam a tomadas de posições que se identificam ou se distinguem com concepções harmônicas, melódicas, poéticas, rítmicas e posturas artísticas.
Olhando para a geração que ficou conhecida como Pessoal do Ceará, que escolheu a música como forma de expressão, encontramos traços formativos semelhantes advindos de processos históricos vividos em um mesmo período e em um contexto social também semelhante.
O conceito de habitus foi para nosso trabalho uma ferramenta científica que trouxe um poder explicativo extremamente relevante, auxiliando na visualização dos aspectos formativos que desnaturalizaram as coincidências. Visto que “o ‘habitus’ é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas.” (BOURDIEU, 2001, p. 21-22).
Os sujeitos da pesquisa e seus pares foram conduzidos ou tomaram a decisão de seguir trajetórias que os levaram para os mesmos espaços, principalmente na universidade. Por se parecerem eles se reconheceram, o habitus musical forneceu senhas de comunicação gerando uma empatia que foi traduzida em várias parcerias artísticas, formando o que chamamos de um sub-campo musical na cidade de Fortaleza.
Por não serem formações idênticas, as trocas enriqueceram suas gramáticas musicais. Concomitantemente a sociedade se modificava tecnologicamente, politicamente, ideologicamente, entre outros aspectos, e a interação com todas as mudanças também forneceram novos elementos que vieram ao encontro ou de encontro ao habitus e se converteram em mais subsídios para que esse grupo de artistas criasse algo próprio.
A noção de campo é também trazida da literatura bourdiesiana:
[...] descrevo o espaço social global como um “campo”, isto é, ao mesmo tempo, como um campo de forças, cuja necessidade se impõe aos agentes que nele se encontram envolvidos e como um campo de lutas, no interior do qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição na estrutura do campo de forças, contribuindo assim para a conservação ou transformação de sua estrutura. (BOURDIEU, 2001, p. 50).
Analisamos os artistas circunscritos em um campo musical global situado nas formas de organização da sociedade brasileira. O rádio, por exemplo, por ser um meio difusor nacional, nos permitiu uma análise dos sujeitos na qualidade de receptores e depois na qualidade de produtores. Observação igualmente relevante é que esse espaço global é constituído de espaços menores onde, estrategicamente os interesses convergentes se alinham de forma a acumular vantagem dentro do campo. Essas formas parciais de organização trazem estruturas peculiares com arranjos internos que se distribuem conforme a dinâmica social. Bourdieu (ibidem, p. 60) nos auxilia a compreender essa afirmação:
É preciso, de fato, aplicar o modo de pensar relacional ao espaço social dos produtores: o microcosmo social, no qual se produzem obras culturais, campo literário, campo artístico, campo científico etc, é um espaço de relações objetivas entre posições – a do artista consagrado e a do artista maldito, por exemplo – e não podemos compreender o que ocorre a não ser que situemos cada agente ou cada instituição em suas relações objetivas com os outros.
Portanto, o pensar relacionalmente foi o método que utilizamos para compreender os princípios geradores do habitus musical que levaram a um mesmo espaço, formando um microcosmo social onde produziram parte de suas obras e que identificamos como um sub-campo musical na cidade de Fortaleza e como esse se definiu em relação aos demais sub-campos musicais dessa metrópole e do Brasil.
As coincidências formativas do habitus só foram possíveis de serem visualizadas comparando as trajetórias dos artistas, desde a origem social, as ligações entre os pais e parentes próximos, a escola, as formas de iniciação musical e as identificações ou distinções com determinadas tradições musicais.
A formação escolar como investimento familiar, identificamos como ação típica das classes médias com vistas à ascensão ou manutenção do status social. O domínio da norma culta da língua portuguesa é uma vantagem competitiva no mercado como um todo e especificamente no campo musical onde se inseriram os artistas em questão. Suas músicas são canções que trazem construções poéticas elaboradas e mesmo quando utilizaram o linguajar coloquial com “erros” do ponto de vista normativo, fizeram com o intuito de gerar algum efeito sonoro. As famílias investiram deliberadamente nesse capital escolar, e os estudantes-artistas de então converteram o mesmo em vantagem efetiva, chegando ao nível superior, aplicando o conhecimento em construções artísticas elaboradas que atendiam à busca de uma nova forma de expressão.
As faixas médias da sociedade são constituídas de professores, comerciantes, militares, funcionários públicos, entre outros. A sobrevivência das classes medianas necessita de subsídios das classes dominantes, de forma que aquelas desenvolvem um conjunto de habilidades que lhes mantêm em contato com estas. Entre as formas de relacionamento se inclui o gestual, o vocabulário, a forma de vestir, a culinária e o gosto musical formando um habitus que se apreende na prática, em um longo processo de alquimia social.
As universidades nas décadas de 50 e 60 fizeram parte de um projeto nacional de urbanização, trazendo para as capitais uma força modernizadora que alimentava o otimismo brasileiro. A UFC – instalada em 1955 – era na época uma instituição nova, com grande força social e tornava-se um campo aberto para o desenvolvimento dos projetos estudantis.
O advento do golpe militar em 1964 frente à força estudantil universitária, a efervescência no campo das artes que vinha desde a bossa-nova, o cinema novo, o teatro de Arena em São Paulo e o teatro Opinião no Rio de Janeiro formavam um caldo cultural que assimilado pelos estudantes-artistas no ambiente universitário os tornaram agentes legitimados que viriam operar as mudanças comportamentais desejadas pela juventude universitária.
Quando chegam na universidade além de um capital lingüístico adquirido na escola, os estudantes também trazem um capital musical formal. O conceito de capital de Bourdieu (1983) refere-se à possibilidade de acumulação, transferência, investimento e lucro, ou seja, são valores com características semelhantes às do capital econômico. Saber falar, se comportar em ambientes sofisticados, deter diplomas, por exemplo, são moedas sociais que se convertem em vantagens efetivas. Nas palavras do autor,
[...] é preciso lembrar a existência de um capital cultural e que este capital proporciona lucros diretos, primeiramente no mercado escolar, é claro, mas também em outros lugares, e também lucros de distinção [...] este lucro direto é acrescido por um lucro suplementar, ao mesmo tempo subjetivo e objetivo, o lucro do desinteresse: o lucro que tem ao se ver – e ao ser visto – como quem não está buscando lucro, como quem é totalmente desinteressado. (p. 9).
Precisamos esclarecer que nem sempre esses investimentos são conscientes, até porque, os sujeitos estão inseridos em um campo onde os capitais já circulam e não há como fugir dos efeitos de transferência que ocorrem nas relações humanas. Há como tornar consciente a existência de tais capitais e como operam, que é o que estamos fazendo em relação à formação dos sujeitos dessa pesquisa.
A iniciação musical nas escolas e seminários, ou seja, no ensino formal fazia parte dos conteúdos escolares, portanto o ensino da linguagem da música chega aos sujeitos sem ser uma escolha dos mesmos e se converte em vantagem quando futuramente optam pela carreira na música. As linguagens apreendidas no âmbito escolar são reforçadas no convívio familiar ao compartilharem com tios, avós, irmãos, enfim, parentes próximos, o gosto pela música; além de aulas particulares em casa ou no conservatório para alguns.
A linguagem acadêmica, porém, não atendia aos desejos de mudanças vividos na segunda metade da década de 60, o que os afastaram da tradição erudita da música. O mesmo podemos dizer das músicas populares de Fortaleza representadas por Aíla Maria, Aleardo Freitas, Cleóbolo Maia, Fátima Sampaio, Humberto Teixeira, Lauro Maia, Lúcia Sampaio, Luiz Assunção, Mozar Brandão, dos grupos Quatro azes e um coringa e Vocalistas tropicais. Os jovens universitários em questão demonstraram em suas declarações respeito e, até certo ponto, admiração pelos artistas cearenses que os antecederam, contudo buscavam uma nova forma de expressão que não negava suas origens, mas não perpetuava o modus operandi da música local.
Adelino Moreira, Ângela Maria, Anísio Silva, Carlos Galhardo, Carmem Miranda, Cauby Peixoto, Emilinha Borba, Francisco Alves, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Marlene, Nelson Gonçalves, Orlando Silva e Vicente Celestino – nomes esses que já havíamos identificado nas falas dos sujeitos – representam a música brasileira popular que foi reverenciada e até certo ponto acolhida em suas obras, mas não se confunde com a produção do Pessoal do Ceará.
O rádio foi o principal veículo da música dos grandes cantores populares. Os intérpretes e compositores da época de ouro do rádio habitaram o imaginário infantil e juvenil dos sujeitos. As radiadoras (serviços de alto-falantes) nos bairros de Fortaleza, nas cidades do interior e depois a chegada do eletrodoméstico mágico – o rádio –, exerceram grande força na constituição do habitus musical daqueles que viriam a produzir suas próprias canções.
Podemos aqui asseverar que os integrantes dessa geração tiveram uma formação híbrida em contato com variadas fontes e gramáticas estéticas distintas como a iniciação formal, as festas e eventos familiares que envolviam música, os cantores populares de Fortaleza, os grandes cantores do rádio. Essa multirreferencialidade foi ainda ampliada no contato com a bossa-nova, Tropicália, Clube da Esquina, Beatles e Rolling Stones.
Comparando com esses outros sub-campos musicais apontados acima identificamos esse sub-campo musical formado por essa geração que mais tarde ficou conhecido como Pessoal do Ceará.
O fato de serem jovens letrados das faixas medianas da sociedade fez com que se encontrassem na universidade e compartilhassem projetos e idéias. O ambiente do debate político trouxe-lhes um esclarecimento ideológico que tinha como principal bandeira a luta pela liberdade. Dessa forma, os então jovens estudantes se identificaram com a UNE-volante, um braço itinerante do CPC (Centro Popular de Cultura) que misturava teatro, música, exposições de artes plásticas, fotografias, pinturas e rodava pelo país. Na UFC, o GRUTA (Grupo Universitário de Teatro e Artes) e o Cactus trouxeram propostas artísticas com as mesmas características e começaram a agregar cada vez mais pessoas interessadas em arte. Com o fechamento político esses grupos se desfizeram, mas os jovens continuaram se reunindo. Os principais pontos de encontro eram o CEU (Clube dos Estudantes Universitários), os Institutos Básicos e a Escola de Arquitetura na UFC.
Os jovens, embora não tenham se desvinculado, foram se distanciando das questões políticas, no sentido da produção de arte engajada e ampliaram suas criações para outros temas – nesse sentido existe uma forte identificação com a Tropicália. Além de diversificarem os motes artísticos, também passaram a freqüentar outros espaços como o Anísio, um bar localizado na avenida Beira-Mar; alguns freqüentaram o Balão Vermelho, na avenida Duque de Caxias, e mais tarde o restaurante Estoril, na Praia de Iracema (bairro da orla marítima de Fortaleza).
Embora tenha existido uma certa ordem cronológica, a maior parte desses locais foram freqüentados concomitantemente. Importante perceber que os sujeitos vão se distanciando da universidade no que se refere à produção artística e explorando novos espaços.
Verificamos a importância do conceito de habitus por mantermos uma ligação entre toda a bagagem acumulada pelos sujeitos com as novas experiências permitindo visualizar uma formação dinâmica.
O habitus musical dos sujeitos se enriqueceu à medida que entrou em contato com ambientes estranhos às suas origens. Os artistas em questão nessa pesquisa souberam em grande medida explorar as possibilidades diversas que se apresentaram em suas trajetórias. Ao perceberem que o ambiente acadêmico, apesar de toda a importância pela função que exerceu em suas formações, não comportava as aspirações artísticas, usaram os festivais como mecanismo de ampliação e divulgação de suas obras.
Os festivais os levaram aos primeiros discos e para outros estados. Primeiro Pernambuco, depois Brasília e Rio de Janeiro. Os conduziram também para programas de televisão – Show do Mercantil, Porque hoje é sábado e Gente que a gente gosta. Esses espaços encetaram um processo de aprendizagem mercadológico, de como funcionava a produção de um evento de grande porte como um festival, a produção musical de um programa de televisão, o embate com as câmeras e os primeiros contatos com artistas consagrados que vinham para esses mesmos programas.
Por decisões individuais, mas no mesmo período – anos 69, 70 e 71 – os sujeitos resolveram alçar vôo para os centros culturais de difusão nacional e conquistar novos espaços onde poderiam firmar seus nomes e colocar suas obras no circuito nacional da música popular brasileira participando de festivais nacionais e programas de televisão. Esse movimento migratório foi captado pelos produtores ligados à indústria fonográfica que perceberam que os cearenses traziam uma nova gramática musical e ainda atendiam os desejos de mudanças juvenis que formavam um mercado consumidor. Nesse período, alguns artistas que vinham em um movimento de criação semelhante, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, estavam exilados, o que tornava interessante para as gravadoras acolhê-los a fim de alimentar o mercado fonográfico.
Esse grupo de pessoas que manteve parcerias, oriundos do mesmo meio social, que compartilharam vários espaços e projetos, se apresentaram para os cariocas, brasilienses e paulistas com uma certa unidade estética. Descendo a detalhes percebemos as diferenças, mas as mesmas não anularam as coincidências formativas de um habitus musical que, assim percebido, foi identificado pelo nome Pessoal do Ceará.
Esse nome até hoje é utilizado por pesquisadores, jornalistas e interessados na história da música do Ceará e figurou como sub-título do primeiro long play – Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem – registrado junto a uma grande gravadora (Continental). Pela sua relevância, na qualidade de marco histórico, e por trazer um conjunto de nomes suficiente para responder à nossa questão, o mesmo foi usado nesse trabalho como principal critério de seleção de sujeitos.
Em seguida também registraram seus trabalhos: Fagner, em 1973, com disco Manera Fru Fru Manera pela Philips; Belchior, em 1974, com disco A palo seco pela Continental; e no mesmo ano, pela RCA, Rodger e Téti lançaram o disco Chão Sagrado, e Ednardo lançou Ednardo – O romance do pavão mysteriozo.
O desenvolvimento de suas carreiras se diversificava cada vez mais e ganhava uma complexidade mercadológica que só poderemos analisar em um próximo trabalho de pesquisa.
Para esse trabalho registramos a formação de um habitus musical em cada um dos sujeitos da pesquisa, forjado na diversidade, mas que encontrou, não por acaso, traços comuns entre os artistas. Esses, através dessas identificações mútuas, compartilharam espaços, projetos e registraram parcerias que constituíram um sub-campo musical que ficou conhecido como Pessoal do Ceará.
As trajetórias individuais dos sujeitos da pesquisa com coincidências formativas, convergindo para espaços sociais comuns, chegando a definir um sub-campo musical que se define e se relaciona com outros sub-campos e campos podem ser sintetizadas visualmente na imagem a seguir:






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WISNIK, José Miguel. E assim se passaram dez anos. In: NOVAES, Adauto. Anos 70. Rio de Janeiro: Europa Empresa Gráfica e Editora. Ltda, 1979-1980.
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www.gilbertogil.com.br/sec_discografia_view.php?id=3 – acesso em: 20 e 28 out. 2006.
www.joaodovale.com.br/default.asp?id=23&mnu=23 – acesso em: 20 out. 2006.
www.mpbnet.com.br/musicos/joao.do.vale/index.html – acesso em: 20 out. 2006.
www.mpbnet.com.br/musicos/nara.leao/index.html – acesso em: 20 out. 2006.
www.mpbnet.com.br/musicos/ze.keti/index.html – acesso em: 20 out. 2006.
www.raimundofagner.com.br – acesso em: 26 e 27 out. 2006.
www.dicionariompb.com.br/verbete.asp?nome=Jacques+Klein&tabela=T_FORM_A – acesso em: 2 nov. 2006.






ANEXOS















ANEXO A

GELÉIA GERAL
Gilberto Gil e Torquato Neto

Um poeta desfolha a bandeira / E a manhã tropical se inicia
Resplandente, cadente, fagueira / Num calor girassol com alegria
Na geléia geral brasileira / Que o "Jornal do Brasil" anuncia

Ê, bumba-yê-yê-boi / Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê / É a mesma dança, meu boi

A alegria é a prova dos nove / E a tristeza é teu porto seguro
Minha terra é onde o sol é mais limpo / E Mangueira é onde o samba é mais puro
Tumbadora na selva-selvagem / Pindorama, país do futuro

Ê, bumba-yê-yê-boi / Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê / É a mesma dança, meu boi

É a mesma dança na sala / No Canecão, na TV
E quem não dança não fala /Assiste a tudo e se cala
Não vê no meio da sala / As relíquias do Brasil:
Doce mulata malvada / Um LP de Sinatra
Maracujá, mês de abril / Santo barroco baiano
Superpoder de paisano / Formiplac e céu de anil
Três destaques da Portela / Carne-seca na janela
Alguém que chora por mim / Um carnaval de verdade
Hospitaleira amizade / Brutalidade jardim

Ê, bumba-yê-yê-boi / Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê / É a mesma dança, meu boi

Plurialva, contente e brejeira / Miss linda Brasil diz "bom dia"
E outra moça também Carolina / Da janela examina a folia
Salve o lindo pendão dos seus olhos / E a saúde que o olhar irradia

Ê, bumba-yê-yê-boi / Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê / É a mesma dança, meu boi

Um poeta desfolha a bandeira / E eu me sinto melhor colorido
Pego um jato, viajo, arrebento / Com o roteiro do sexto sentido
Voz do morro, pilão de concreto / Tropicália, bananas ao vento

Ê, bumba-yê-yê-boi / Ano que vem, mês que foi
Ê, bumba-yê-yê-yê / É a mesma dança, meu boi

© Gege Edições Musicais ltda (Brasil e América do Sul) / Preta Music (Resto do mundo) / Warner/Chappell Edições Musicais LTDA. 6034410 BRMCA6800155[116]
ANEXO B

Lista dos nomes dos sujeitos da pesquisa

NOME(S) ARTÍSTICO(S)
NOME COMPLETO
1. Augusto Pontes
Francisco Augusto Pontes
2. Belchior
Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes
3. Cláudio Pereira
Cláudio Roberto de Abreu Pereira
4. Dedé / Dedé Evangelista / José Evangelista Moreira
José Evangelista de Carvalho Moreira.
5. Ednardo
José Ednardo Soares Costa Sousa
6. Fagner / Raimundo Fagner
Raimundo Fagner Cândido Lopes
7. Fausto Nilo
Fausto Nilo Costa Júnior
8.Francis Vale
Francis Gomes Vale
9. Ricardo Bezerra
Ricardo Figueiredo Bezerra
10. Rodger / Rodger Rogério / Rodger de Rogério
Rodger Franco de Rogério
11. Tânia Araújo / Tânia Cabral / Tânia Barbosa de Araújo
Tânia Barbosa Cabral de Araújo
12. Téti / Teti / Tetty
Maria Elisete Morais de Oliveira e Rogério



















ANEXO C

Letras das músicas do disco Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem.

LADO A

INGAZEIRAS
(Ednardo)

Nascido pela Ingazeiras
Criado no ôco do mundo
Meus sonhos descendo ladeiras
Varando cancelas
Abrindo porteiras
Sem ter o espanto da morte
Nem do ronco do trovão
O sul, a sorte, a estrada me seduz
É ouro, é pó, é ouro em pó que reluz
É ouro em pó, é ouro em pó
É ouro em pó que reluz
O sul, a sorte, a estrada me seduz.


TERRAL
(Ednardo)

Eu venho das dunas brancas
Onde eu queria ficar
Deitando os olhos cansados
Por onde a vida alcançar
Meu céu é pleno de paz
Sem chaminés ou fumaça
No peito enganos mil
Na Terra é pleno abril
Eu tenho a mão que aperreia, eu tenho o sol e areia
Eu sou da América, sul da América, South America
Eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu sou do Ceará
Aldeia, Aldeota, estou batendo na porta prá lhe aperriar
Prá lhe aperriar, prá lhe aperriar
Eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu sou do Ceará
A Praia do Futuro, o farol velho e o novo são os olhos do mar
São os olhos do mar, são os olhos do mar
O velho que apagado, o novo que espantado, vento a vida espalhou
Luzindo na madrugada, abraços corpos suados na praia falando amor.






CAVALO FERRO
(Fagner e Ricardo Bezerra)

Montado num cavalo ferro
Vivi campos verdes, me enterro
Em terras trópico-americanas
Trópico-americanas, trópico-americanas
E no meio de tudo, num lugar ainda mudo
Concreto ferro, surdo e cego
Por dentro desse velho, desse velho
Desse velho mundo
Pulsando num segundo letal
No planalto central
Onde se divide, se divide, se divide
O bem e o mal
Vou achar o meu caminho de volta
Pode ser certo, pode ser direto
Caminho certo sem perigo, sem perigo
Sem perigo, sem perigo fatal.



CURTA METRAGEM
(Rodger e Dedé Evangelista)

Embaixo das marquises
Nem tristes nem felizes
Olhando, olhando a chuva cair
Não há nada pra ser feito
Está tudo, tudo tão direito
A noite vem chegando
Um ônibus parando
A vida, a vida é mesmo normal
Será que ninguém sabe
Aquilo, aquilo que não cabe
Nas folhas, nas folhas, nas folhas de jornal
Nas folhas, nas folhas, nas folhas de jornal
Primeiro uma atitude,
Segundo algo que mude
Terceiro ação, ação de mudar
Porém nada acontece
Um táxi, um táxi aparece
Melhor, bem melhor
Melhor se desculpar.






FALANDO DA VIDA
(Rodger e Dedé Evangelista)

No meio do dia não venha tentar quebrar meu encanto
Não venha chorar, por enquanto
Meus olhos de olhar, de olhar querem ver o que há
Não venha me encher de mistérios
Não vou prometer ficar sério

Não venha, não venha tentar quebrar meu encanto
Não venha chorar, por enquanto
Não venha me encher de mistérios
Não, não vou prometer ficar sério
Não venha estragar meu prazer
Não, não vou prometer
Não venha estragar
Enquanto durar

No meio da noite não posso deixar
Não posso deixar de sair
Se você quiser pode vir
Não quero mudar minha sorte

Se a morte, se a morte vier me encontrar
Ela sabe que estou entre amigos
Falando da vida, falando da vida
Falando da vida, e bebendo num bar.



DONO DOS TEUS OLHOS
(Humberto Teixeira)

Num te esqueça qu'eu sou dono dos teus “zóio”
Faz favor de num espiar pra mais ninguém
Esse azul cor de promessa dos teus “zóio”
Faz “quarquer” cristão gostar de tu também
Que Nosso Senhor perdoe os meus ciúmes
Quando penso em cegar os “zóios” teu
Pra que eu, somente eu seja o teu guia
Os “zóio” dos teus “zóio”
A luz dos “zóios” teus



LADO B

PALMAS PRA DAR IBOPE
(Ednardo e Tânia Araújo)

Palmas pra dar ibope
Palmas pra dar ibope
Palmas pra dar ibope
Bate, bate, bate, bate

O desassossego, ronda nossa aldeia
As nuvens cativas
E canções radioativas
O desassossego ronda nossa aldeia
Orações e a teia de súbitas virtudes

Céus, celuloses, celulites tropicais
As elites e os demais
Rondam nossa aldeia
Sons, megatons, de uns versos obscenos
A vingança e o veneno rondam nossa aldeia
Mas tanto faz.

BEIRA MAR
(Ednardo)

Na Beiramar
Entre luzes que lhe escondem / Só sorrisos me respondem
Que eu me perco de você ( Bis )

Você nem viu
A lua cheia que eu guardei / A lua cheia que eu esperei
Você nem viu, você nem viu ( Bis )

Viva o som, velocidade / Forte, praia, minha cidade
Só o meu grito nega aos quatro ventos / A verdade que eu não quero ver ( Bis )

Na Beiramar
Entre luzes que lhe escondem / Só sorrisos me respondem
Que eu me perco de você ( Bis )

E o seu gosto / Que ficando em minha boca
Vai calando a voz já rouca
Sem mais nada pra dizer ( Bis )

E eu fugindo de você / Outra vez me desculpando
É a vida, é a vida / Simplesmente e nada mais ( Bis )

E um gosto / De você que foi ficando
E a noite enfim findando / Igual a todas as demais
E nada mais ( Bis )

SUSTO
(Rodger)

O que nos importa que se feche a porta
Por esse caminho ninguém quer passar
É muito grande a dor, um sofrimento enorme / Um susto

Que se fechem as contas bancárias
Que se fale de bem ou de mal
Que se brinque na areia da praia
Que se retorne ao planalto central

Nada disso importa, alegria morta
Nada disso importa, alegria
Por ela sentiu febre a noite inteira
Saiu e não deu bolas pra ninguém
Pela menina lá da rua da virada.


A MALA
(Rodger Rogério e Augusto Pontes)

Meus olhos cansados de ver o mundo / Meus olhos molhados de ver o mundo
Meus olhos cansados de viver no mundo / Meus olhos molhados de viver no mundo

Meus olhos parados no meio do mundo
Mil olhos olhados no canto da sala / Do mundo onde vou
Nossos olhos guardados dentro da mala / Do mundo onde estou
Nos olhos, olhares sem ver o mundo / Mil mundos rodando no canto da sala

Na sala mortiça, a mala piscando / Na sala a preguiça da mala no canto
A mala estende seu manto na sala / A sala se cala no canto da mala
Mil olhos se flecham no canto da sala / Da sala

Sentado, sentido, ouvido, perdido / Comovido, comedido, com que digo, consentido
Áspera a espera
Aspirina, aspirando, respirando, suspirando / Vendendo, vendado, vedando

Pisca, piscando, preguiça, na sala, na mala
Fumaça azul, luz, luz e lágrimas
No nicho, no luxo no lixo
Num minuto escuto, lato e luto
Vendo, só vendo, sorvendo, vendendo
Vendido na mala perdido
Num canto da sala

Voz mansa de criança / Dança e trança a esperança
No embalo da mala, embalagem vendendo / Vedando, minhas portas, meus sentidos
Minha chave, meu segredo, mil cuidados, não ter medo
Pisca, pisca, em ti e em mim, coisas assim / Coisas assim e et cétera.
ANEXO D

Para melhor visualização das figuras que ilustraram o trabalho gravamos as imagens dos discos em CD-ROM.














































[1] Não nos filiamos ao pensamento positivista que crê na neutralidade científica, em especial quando se trata de uma investigação no campo das ciências humanas, mas também não deixamos de acatar a necessidade de certo distanciamento para melhor visualização dos arranjos sociais, ainda que sabendo que essa postura não chegue a descolar completamente o pesquisador do seu objeto de estudo. No nosso caso encontramos a oportunidade desse relativo distanciamento temporal analisando trajetórias que tiveram seu ápice na década de 70.
[2] A lista fornecida por Rodger não está uniforme (alguns nomes vêm completo outros incompletos e outros apenas o codinome), pois o entrevistado registrou os nomes conforme suas lembranças.
[3] Como a ABNT não traz qualquer referência sobre a normalização das falas dos sujeitos pesquisados, optamos por formatá-las como as citações longas, mas com fonte em itálico para diferenciá-las das citações teóricas.
[4] Sempre que utilizarmos os dados fornecidos pelos sujeitos através das entrevistas que nos concederam apontaremos a data da entrevista.
[5] Alguns anos depois, Francis Vale inicia uma trajetória como produtor, roteirista e diretor de cinema; em seguida torna-se também letrista, chegando a dividir um disco autoral com Alano Freitas intitulado Liberado.
[6] Vamos utilizar os nomes artísticos dos entrevistados durante o trabalho, contudo verificamos que alguns mudaram a forma de grafar os mesmos. Por exemplo, em alguns discos Fagner assina com seu primeiro nome: Raimundo Fagner; Dedé Evangelista no seu primeiro registro fonográfico – o disco do I Festival Nordestino da Música Popular – não aparece seu codinome e sim José Evangelista Moreira, já no disco Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem foi registrado simplesmente “Dedé”. No mesmo disco, Téti está grafado “Tetty”, já nos próximos discos da cantora encontramos “Teti” e “Téti”. Para melhor identificação dos artistas colamos em anexo seus nomes completos e os seus nomes artísticos (Anexo B).
[7] Cidade do norte do Ceará.
[8] Nome do pai: Oscar Costa de Sousa. Nome da mãe: Maria Ester Soares Costa Sousa.
[9] Cidade localizada ao sul do Ceará.
[10] Cidade localizada no sertão central do Ceará.
[11] Cidade localizada no sertão central do Ceará.
[12] Bairro da cidade de Fortaleza
[13] Avenida da cidade de Fortaleza.
[14] “Johann Sebastian Bach (1685-1750), um dos principais representantes – para alguns o principal – da música Barroca, é até hoje um dos compositores mais estudados na educação musical.” (ROGÉRIO, 2005 apud ALBUQUERQUE, 2005, p. 416).
[15] “Beethoven, Ludwing van (1770-1827): Compositor alemão, nascido em Bonn. [...] Sobrevivem cerca de 600 obras de Beethoven, incluindo suas 9 sinfonias, diversas aberturas, 5 concertos para piano, 16 quartetos para cordas, 10 sonatas para violino e piano, 32 sonatas para piano, 5 sonatas para violoncelo, trios com piano e para cordas, 2 missas, uma ópera e cerca de 200 canções.” (ISAAC; MARTIN, 1985, p. 38).
[16] “Haydn, (Franz) Joseph (1732-1809): Compositor Austríaco. Nascido em Rohrau, de família pobre, foi mandado para Viena aos 8 anos, e aos 9 era menino de coro na catedral de Santo Estevão. [...] escreveu mais de 100 sinfonias, quase 80 quartetos para cordas, mais de 50 sonatas e 31 trios para piano; em todas essas composições, desenvolveu as formas e os estilos clássicos, ficando conhecido como ‘o pai da sinfonia’.” (Ibidem, 168).
[17] “Bruckner, (Josef) Anton (1824-96): Compositor e organista austríaco. [...] tornou-se menino de coro na abadia de Sankt Florian, [...] conquistou gradualmente elevado prestígio, sendo popular sobretudo na Áustria e na Alemanha. É conhecido sobretudo por suas 9 sinfonias [...]. Também escreveu música sacra vocal [...] assim como alguma música de câmara e de órgão.” (ISAAC; MARTIN, 1985, p. 55).
[18] “Liszt, Franz (1811-86): Compositor, pianista e professor húngaro. [...] passou 8 anos em Roma concentrando-se em música religiosa [...] foi o maior pianista de seu tempo, e sua técnica talvez ainda não tenha sido igualada até hoje [...] As peças originais de Liszt para piano são de uma exigência técnica sem precedentes [...]. Realizou numerosas transcrições para piano, [...] escreveu fantasias sobre temas operísticos [...], inventou a expressão “poema sinfônico”, que usou para obras orquestrais de natureza programática [...]. Escreveu as sinfonias Fausto (1854-57) e Dante (1855-56). E 2 concertos para piano [...], muitas obras corais, [...] também compôs missas e salmos. Escreveu ainda algumas obras de câmara e para órgão, e mais de 70 canções. Suas últimas composições usam uma linguagem harmônica altamente ampliada.” (Ibidem, 214).
[19] “Gounod, Charles (François) (1918-93): Compositor, regente e organista francês [...]. Escreveu óperas, obras corais, canções sacras e seculares e muita música litúrgica.” (Ibidem, 152).
[20] “Vaughan Williams, Ralph (1872-1958): Compositor britânico [...]. Desejoso de libertar a música inglesa do peso da tradição acadêmica alemã, compilou canções folclóricas e organizou edições de música religiosa da Inglaterra. [...] escreveu 9 sinfonias [...], várias óperas [...], balés; obras corais [...] uma fantasia orquestral [...] música de câmara e muitas canções.” (Ibidem, p. 397).
[21] “Poulenc, Francis (1899-1963): Compositor francês [...]. A produção de Poulenc inclui óperas, um balé; obras orquestrais, música sacra, música de câmara; muitas peças para piano; e canções.” (Ibidem, p. 299.).
[22] “Stravinsky, Igor Feodorovich (18882-1971): Compositor russo (naturalizado norte-americano em 1945), uma das figuras cruciais da música deste século. Compõe balé, óperas, concerto para piano, sinfonias, missa. Sua obra mais conhecida é A Sagração da Primavera (1913).” (Ibidem, 299).
[23] O nome da instituição é “Colégio Sobralense”.
[24] Cidades do interior do estado do Ceará.
[25] Evaldo Gouveia tornou-se um violonista consagrado nacionalmente. Embora com destaque para uma particular habilidade em seu instrumento, Gouveia também se projetou como intérprete e ainda mais como compositor, tendo suas músicas registradas nas vozes de importantes intérpretes brasileiros.
[26] Fares, Marta e Elizete são irmãos de Fagner.
[27] Wilson Cirino, violonista virtuose que também freqüentou as rodas musicais cearenses na década de 70.
[28] Avenida da cidade de Fortaleza.
[29] Palavra do linguajar popular cearense. Dar uma cagaço em alguém significa chamar a atenção desta pessoa de forma enérgica; repreender alguém por alguma coisa.
[30] “Jacques Klein começou a estudar piano no Conservatório Alberto Nepomuceno [...]. No início dos anos 1940, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde estudou com Liddy Mignone, no Conservatório Brasileiro de Música, no qual passou a lecionar nos anos 1950. Foi professor da Escola de Música da UFRJ e da Universidade de Miami, nos EUA.” Cf. .
[31] Técnica violonística que consiste em comprimir várias cordas na mesma casa a uma só vez com o mesmo dedo. Invariavelmente essa técnica apresenta-se com um dos primeiros grandes desafios para o iniciante no aprendizado do instrumento.
[32] Essas técnicas não necessariamente são desenvolvidas pelos estudos formais. É comum no aprendizado autodidata que o instrumentista solucione problemas de execução de forma completamente diferente dos recomendados pela tradição dos estudos formais. Não entraremos aqui no mérito da questão examinando qual seria a solução mais ou menos adequada, confirmamos, porém ser uma forma de construção de conhecimento.
[33] Mércia de Vasconcelos Pinto atualmente é professora de música da UnB (Universidade de Brasília).
[34] Grupo de teatro e música com maior ênfase na linguagem musical que se reunia na UFC.
[35] Quitéria Torres Santos. Faltando 15 dias para a conclusão da Licenciatura em Música oferecida pelo Conservatório de Música Alberto Nepomuceno em convêncio com a UFC, sua casa foi invadida pela Polícia Federal e ela fugiu para a Bahia. Nesse estado fez o curso de Artes Industriais que era mantido através do convênio entre o Centro Técnico da Bahia (CETEBA) e a Universidade Federal da Bahia (UFBA). Posteriormente foi para o Rio de Janeiro onde ingressou e se aposentou como professora de Artes Industriais da Prefeitura do Rio de Janeiro.
[36] Teatro Universitário Pachoal de Carlos Magno que até hoje se mantém funcionando vizinho ao Conservatório de Música Alberto Nepomuceno.
[37] Maria Eunice Moura e Silva atualmente é professora do Curso de Música da UECE.
[38] Apontamos,contudo, que o ensino do piano vem se modificando e não mais podemos caracterizar seus estudos como predominantemente formais. Estamos aqui analisando uma realidade datada.
[39] Importante se faz registrar que a voz é também um instrumento com vasto estudo no campo da música erudita, com sólida tradição nos estudos sobre as técnicas de sua utilização e com um número muito grande de peças, com ou sem texto, escritas especialmente para a música vocal.
[40] Em 1987 a CBS lançou uma seleção de 12 músicas com letras de Fausto Nilo em um vinil intitulado Fausto Nilo: 12 letras de sucesso; em 1997 pelo selo “Luz do Sol Produções” lançou o CD Esquinas do deserto, agora como intérprete; em 2002 pelo selo “Pão e Poesia” lançou o CD Casa Tudo Azul, e em 2004 pelo mesmo selo gravou o Fausto Nilo: Verso e Voz ao vivo.
[41] Fomos acostumados a utilizar a expressão música clássica como sinônimo de música erudita; contudo, música clássica é um período da música erudita identificada aproximadamente entre os anos 1750 e 1830 tendo como seus representantes principais os austríacos Franz Joseph Haydn (1732-1809), Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e o alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827) em sua primeira fase.
[42] Ainda que não seja objeto de nosso estudo, a questão do regime militar será apontada em algumas partes do texto pela forte pressão que sujeitava a todos durante o período de exceção.
[43] A bossa-nova traz como uma de suas características a elaboração na montagem e encadeamento de acordes com utilização de dissonâncias que não são comuns no que estamos chamando de música brasileira popular.
[44] Diretor do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural da publicação Voz do Rádio.
[45] Publicação carioca da década de 30 especializada na área da radiofonia em plena expansão naquele período.
[46] Por ser um arquivo retirado da Internet, não consta página nesta citação.
[47] “Nasceu em 19 de janeiro de 1942 e nos deixou em 7 de junho de 1989. Ficou conhecida como ‘musa da bossa-nova’, por acolher em seu apartamento na Av. Atlântica no Rio de Janeiro os jovens que fomentavam um novo jeito de tocar e cantar samba. Contudo Nara Leão surpreendeu ao interpretar sambistas esquecidos no seu disco de estréia. No segundo trabalho, apostou tudo nas canções de protesto. A partir daí, popularizou-se como a mulher corajosa, diva do Show Opinião e ícone da juventude brasileira engajada contra a ditadura nos anos 60.” Cf. .
[48] “Zé Kéti (José Flores de Jesus) nasceu no Rio de Janeiro-RJ em 6 de outubro de 1921 e faleceu em 1999. Neto do flautista e pianista João Dionísio Santana, companheiro do compositor Índio e de Pixinguinha, e filho de um marinheiro tocador de cavaquinho, Josué Vale de Jesus, desde criança interessou-se por música. [...] Em 1964, ao lado de Nara Leão e João do Vale, encenou o show Opinião, em que lançou alguns sambas de sucesso, como Opinião, Acender as velas e Diz que fui por aí (com Hortênsio Rocha).” Cf. .
[49] “João Batista do Vale nasceu em Pedreiras-MA em 11 de outubro de 1934 e morreu em 1996. Desde pequeno gostava muito de música, mas logo teve de trabalhar, para ajudar a família. Aos 13 anos foi para São Luís-MA, onde participou de um grupo de bumba-meu-boi, o Linda Noite, como ‘amo’ (pessoa que faz os versos) [...]. Em 1964 estreou como cantor no restaurante Zicartola, onde nasceu a idéia do show Opinião, dirigido por Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes e Armando Costa, que foi apresentado no teatro do mesmo nome, no Rio de Janeiro-RJ. Dele participou, ao lado de Zé Kéti e Nara Leão, tornando-se conhecido principalmente pelo sucesso de sua música Carcará (com José Cândido). Cf. <>.
[50] Região sul do Ceará.
[51] Cidade localizada na região do Cariri, sul do Ceará.
[52] Cidade localizada na região do Cariri, sul do Ceará.
[53] Documento localizado no acervo da Associação 64/68 pelo pesquisador Wagner José Silva de Castro e registrado em sua monografia aprovada pelo Curso de Especialização em Perspectiva e Abordagens em História da Universidade Estadual do Ceará, em 2004, com o título “Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem: artistas cearenses do CPC, da universidade e bares”.
[54] Theatro José de Alencar, localizado no centro da cidade de Fortaleza inaugurado em 17 de junho de 1910.
[55] Além das músicas apontadas o disco também traz Vingança, de Lupicínio Rodrigues; Gente humilde, de Garoto, Vinícius de Moraes e Chico Buarque; Alguém como tu, de Jair Amorim e José Maria Abreu; João Valentão, de Dorival Caymmi; Nunca, de Lupicínio Rodrigues; Ronda, de Paulo Vanzolini; Brigas, de Evaldo Gouveia e Jair Amorim; Da cor do pecado, de Bororó; e Folha morta, de Ary Barroso.
[56] Por ser um arquivo retirado da Internet, não consta página nesta citação.
[57] Ver glossário (Anexo E).
[58] Ver glossário (Anexo E).
[59] Com a expressão “sonoridade” estamos apontando uma paisagem sonora descrita por instrumentos, timbres vocais, formas de arranjos, enfim um conjunto de elementos sonoros que tipificam o que chamamos de “sonoridade”.
[60] Ver glossário (Anexo E).
[61] Ver glossário (Anexo E).
[62] “Essa música foi composta por Ednardo inspirado na vida do artista plástico, pintor e desenhista Aldemir Martins. Belchior, Ednardo e Rodger compunham músicas sobre os entrevistados do programa televisivo “Proposta” apresentado pela TV Cultura de São Paulo em 1972 sob direção e produção do jornalista Júlio Lerner. O programa que apresentou essa música foi ao ar dia 8 de agosto de 1972. Além de Belchior, Ednardo e Rodger, Téti também cantava e fazia os vocais. O grupo contava ainda com os músicos Sérgio Shara nas flautas; Sérgio Palha no contra baixo e Cacá nas percussões.” Cf. .
[63] Apontamos “corda de aço” para diferenciar da viola tocada com arco, presente no naipe de cordas das orquestras ao lado dos violinos, violoncelos e contrabaixos.
[64] Ver glossário (Anexo E).

[65] Uma praia que demorou a ser freqüentada, pois o acesso a essa parte da orla marítima fortalezense era difícil por causa da presença de um grande número de dunas. O desenvolvimento já chegou a essa praia há algum tempo com grande movimentação de freqüentadores de barracas de praias e banhistas.
[66] Encontramos no endereço eletrônico www.gd.com.br/ednardo um comentário de Ednardo sobre Terral, que melhor nos informa sobre sua música: Esta música e letra, é de quando eu estava chegando em São Paulo – 1972 – com saudades de minha terra, fazendo uma leitura à distância do que ela representa. Mas também é tradução da identidade humana com seu local de origem e pontos de interligações de vivências, aprendizados e momentos afetivos. E na essência, é a vontade humana do sentimento cidadão do mundo, de ir sem fronteiras. O verbo aperrear, no sentido de se medir mutuamente "de bater na porta” – para emitir e receber códigos de relações, possibilidades e momentos únicos de se encontrar e crescer.
[67] Ver glossário (Anexo E).
[68] Vale a pena registrarmos as palavras do letrista da música: “‘Cavalo Ferro’ foi uma coisa que veio assim direto no Anísio [bar que se localizava na beira-mar e que foi um dos principais pontos de encontro desses artistas], eu pedi o bloco de notas do garçom e a caneta e ali mesmo veio, sabe... porque tem música que você constrói, você tira um bloco, puxa dali, puxa daqui, de acolá, troca verso. ‘Cavalo Ferro’ não, foi, veio direto, direto, direto, verso por verso, um atrás do outro, o que o Fagner fez foi algumas repetições e tirou uns três antes que tinha no final que eu nem me lembro mais e ela foi inspirada na vida dele em Brasília. Ele tinha acabado de vir de Brasília, ainda na época da dureza, veio de ônibus e o ‘Cavalo Ferro’ nada mais era que um velho... sei lá... expresso de luxo desses da vida que ele tinha vindo sacolejando de lá pra cá, no começo de vida e Brasília, era naquela época da efervescência, regime militar e tal tem todas aquelas referências ligadas... muito sutis, né, da história de Brasília, do regime militar e que na época a censura, qualquer coisa ela queria dá o pitaco dela e em ‘Cavalo Ferro’ ela não se dando por satisfeita de aprovar aquilo do jeito que tava, mandou trocar ‘se decide’ por ‘se divide’, e como são palavras parecidas, cá pra nós, não diferencia muito uma da outra, então são as coisas da vida, da história, né?” (Ricardo Bezerra, 6 de junho de 2006).
[69] Ver glossário (Anexo E).
[70] Ver glossário (Anexo E).
[71] Ver glossário (Anexo E).
[72] Ver glossário (Anexo E).
[73] Ver glossário (Anexo E).
[74] Ver glossário (Anexo E).
[75] Ver glossário (Anexo E).
[76] Ver glossário (Anexo E).
[77] Embora uma análise com maior profundidade e precisão no que se refere à linguagem musical pudesse ser feita, a mesma não agregaria maior poder explicativo para a questão em pauta. Contudo essa é uma tarefa relevante que deve ser analisada oportunamente em outro estudo.
[78] “Trio paulista formado por Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias que apresentava um rock anárquico e experimental, que misturava desde psicodelia, Beatles, música concreta, música erudita e até o samba. Tudo isso com muita distorção de guitarra. Junto com seus colegas tropicalistas: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Capinam e Nara Leão, eles atearam fogo no cenário musical brasileiro.” Cf. .
[79] Com a expressão “sonoridades” estamos apontando uma paisagem sonora descrita por gêneros musicais usados pelos grupos citados, instrumentos, timbres vocais, formas de arranjos, enfim um conjunto de elementos sonoros que tipificam o que chamamos de “sonoridades”.
[80] Fausto Nilo narra uma das primeiras vezes que encontrou com Augusto Pontes, dessa feita no Clube dos Estudantes Universitários (CEU).
[81] Provavelmente o horário do almoço já que no CEU funcionava o Restaurante Universitário.
[82] Fausto se refere à rua Joaquim Magalhães.
[83] Uma das principais avenidas do centro de Fortaleza.
[84] Uma das principais praças do centro de Fortaleza.
[85] Festival produzido por Aderbal Freire Filho, que assinava como Aderbal Jr., ocorrido em 1969 promovido pela rádio Assunção. Não ouve a etapa final do Festival, mas os finalistas gravaram um disco no Estúdio Orgacine, prensado pela Cia Industrial de Discos no Rio de Janeiro.
[86] Rodger nos informa que era a “bodega do Nonato” até hoje em funcionamento.
[87] Estudante da Matemática.
[88] Heliomar, Walmik, Rodger e Flávio eram estudantes da Física.
[89] Mãe do Rodger.
[90] Mãe da Téti.
[91] Médico, amigo dos artistas que acolhia e promovia reuniões em sua casa.
[92] Conforme Cláudio Pereira o “Capela Cistina” foi uma forma de dar continuidade às idéias do GRUTA que com o AI-5 foi extinto. Pereira nos informou que, como eles não tinham sede, nem estatuto, nenhuma formalização, a Polícia Federal ficava confusa querendo identificar o “Capela Cistina” sem sucesso. Cláudio conta que promoviam pequenas exposições e reuniões entre amigos e o principal ponto de encontro era o bar Balão Vermelho.
[93] Fagner se refere ao festival que ganhou em 68 no Theatro José de Alencar com a música “Nada sou”.
[94] Alano Freitas, artista plástico e compositor da geração seguinte e filho de um importante violonista da geração que antecede o Pessoal do Ceará, o Aleardo Freitas.
[95] Rodger registra que houve mais uma ou duas edições deste festival. Ednardo participou do mesmo festival em 1970 com a música “Beira Mar” de sua autoria.
[96] Ray Miranda é um cantor que ainda hoje se apresenta nos hotéis e restaurantes de Fortaleza, muito elogiado pelo seu timbre e afinação vocal. Miranda casou com Maria Eliane Moraes de Oliveira que é irmã da Téti.
[97] Jovem estudante de arquitetura que morreu antes de concluir o curso, o chorinho se chama Encabulado e foi interpretado por Ray Miranda.
[98] Rodger regravou essa música em 1974 no disco Chão Sagrado pela RCA Victor, que dividiu com Téti. Nesse disco a música está grafada Bye, bye baião.
[99] O disco registrou seu nome como José Evangelista Moreira.
[100] O disco registrou seu nome como Tânia de Barbosa Araújo.
[101] Centro de Estudos Universitários de Brasília.
[102] Ricardo Bezerra anota um dado relevante do ponto de vista musical: “Eu acho que a primeira música feita em maracatu foi ‘Manera fru fru’ onde deliberadamente eu achava que era interessante fazer uma música no ritmo maracatu [...] e o Naná fez a coisa dele, lá, que não tinha nada a ver com maracatu. Mas quem começou a compor ‘Manera fru-fru’ fui eu, eu fiz o refrão, aí depois o Fagner fez praticamente o resto da música e eu fiz a letra e Fagner também fez letra, foi uma música que realmente tinha letra e música dos dois. Mas ela foi concebida como se fosse um maracatu [...].” (6 de junho de 2006). O Naná a que Bezerra se refere é o percussionista pernambucano Naná Vasconcelos. Para nosso trabalho não é tão relevante a anterioridade, mas o fato de o maracatu aparecer em suas obras.
[103] Cf. .
[104] Em Terral do Sonhos: o cearense na música popular brasileira livro da socióloga Mary Pimentel encontramos o registro de mais dois festivais na segunda metade da década de 70: “Em 1976, a euforia musical cearense expressa no sucesso obtido com o lançamento dos discos de Fagner, Belchior e Ednardo, se estendeu até Fortaleza com a realização de um festival, o Festival da Costa do Sol na praia da Tabuba [...] e ainda em Fortaleza nesse mesmo ano, a empresa jornalística do ‘O Povo’ patrocinou o Festival da Credimus ocorrido na Avenida Beira-Mar. O Festival se estendeu até o ano de 1979 [...]. (PIMENTEL, 2006, p. 133). O embate desses artista com a indústria cultural pretendemos analisar amiúde no doutorado.
[105] Encontramos o registro do programa Gente que a gente gosta no livro Terral dos sonhos: o cearense na Música Popular Brasileira da socióloga Mary Pimentel (2006), primeira pesquisadora sobre o “Pessoal do Ceará”.
[106] A música Bye, bye baião foi a melhor colocada entre as cearenses, mas não ganhou, ficou em segundo lugar.
[107] Anteriormente o que existia eram as movimentações no ambiente universitário.
[108] Téti não era compositora.
[109] Cf. .
[110] Conforme Rodger, Pekim era mais novo do que os demais e ao retornar para Fortaleza se dedicou a outra área profissional que não soube precisar.
[111] Segue em um CD-ROM com todas as imagens dos discos que nos serviram de ilustração, para melhor visualização dos textos contidos nos mesmos (Anexo D).
[112] O “Pasquim” teve uma importância histórica muitíssimo relevante na imprensa brasileira, contudo não cabe no momento aprofundarmos o grande valor cultural e político deste, sob pena de fugirmos do tema sobre o qual estamos nos debruçando.
[113] Cf. .
[114] As viagens realizadas pelos artistas apontam para um tipo de formação que pretendemos pesquisar no próximo trabalho.
[115] Para melhor visualização, os textos se encontram expandidos no Anexo D.
[116] Cf. . Acesso em: 28 out. 2006.