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Fortaleza, Ceará, Brazil
Professor Doutor da Universidade Federal do Ceará. Radialista e compositor. Busco entender um pouco dos mistérios da existência. Nessa busca venho encontrando ciência, arte, amigos, novos caminhos, novas possibilidades.

Monday, January 23, 2006

REFERENCIAIS ESTÉTICOS NA MÚSICA CEARENSE DOS ANOS SETENTA.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE EDUCAÇÃO - FACED
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Projeto – Mestrado em Educação Brasileira
Núcleo Educação Currículo e Ensino

O CURRÍCULO NA DÉCADA DE OITENTA E OS REFERENCIAIS ESTÉTICOS NA MÚSICA CEARENSE DOS ANOS SETENTA.
PROJETO DE DISSERTAÇÃO

PEDRO ROGÉRIO

Fortaleza – Janeiro 2005


S U M Á R I O


- INTRODUÇÃO
- JUSTIFICATIVA
Nordeste: uma pluralidade de ritmos
Ceará X eixo Rio/São Paulo
A riqueza musical do Ceará
O Pessoal do Ceará
O marco: a gravação do LP

- PROBLEMATIZAÇÃO
A Cultura de massas

- DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA
A disciplina de música no currículo das escolas do Estado do Ceará

- OBJETIVOS DA PESQUISA
Geral
Específicos


- QUADRO TEÓRICO
Artes, identidades e formação do imaginário: uma tarefa da educação
A formação do professor de artes
A estética do Ceará e do mundo

- PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DE INVESTIGAÇÃO
Referencial metodológico da investigação

- REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA


O CURRÍCULO NA DÉCADA DE OITENTA E OS REFERENCIAIS ESTÉTICOS NA MÚSICA CEARENSE DOS ANOS SETENTA.

“... a arte e a vida se interligam por
uma rede de cumplicidades mútuas...”
(Rouanet, 1987)

1. INTRODUÇÃO

A produção artística musical de uma região se confunde com sua própria história, influenciando-a e sendo influenciada. “Desde o início da história da humanidade a arte sempre esteve presente em praticamente todas as formações culturais” (PCN: arte/MEC, 21). A tarefa aqui proposta deter-se-á em estudar qual a importância, para o ensino da música no município, atribuída pelos currículos das escolas públicas estaduais ao movimento musical que ficou conhecido como Pessoal do Ceará e teve seu ápice no início dos anos setenta, buscando compreender qual a receptividade dos currículos, na década de oitenta, à produção artística do grupo de artistas que integraram o citado movimento.
Acreditamos que a disciplina de música nos currículos, sem prejuízo dos demais movimentos que conquistaram reconhecimento nacional e internacional, deveria pôr em relevo a produção artística da sua região. Não obstante, salvo os artistas que ganharam projeção nos meios de comunicação de massa, os alunos e a sociedade como um todo não se apropria das importantes manifestações culturais da própria região. Verifica-se então que mesmo os que são de conhecimento comum dos alunos somente o são em virtude dos meios de comunicação.
A pesquisa de conceitos estéticos, sociais e culturais pode iluminar o entendimento do que foi o movimento Pessoal do Ceará, contribuir com uma maior e mais profunda compreensão dos valores artísticos da nossa região e oferecer subsídios para um ensino de música mais sintonizado com seu tempo e espaço.

2. JUSTIFICATIVA

— Nordeste: uma pluralidade de ritmos

Acreditamos que a produção artística regional fornece um leque de opções podendo ser uma boa saída na busca de uma ampliação dos conhecimentos dos alunos de música, o que implicaria em um desenvolvimento da visão de mundo. “A arte de cada cultura revela o modo de perceber, sentir e articular significados e valores que governam os diferentes tipos de relações entre os indivíduos na sociedade” (PCN: arte/MEC, 20).
A Região Nordeste oferece uma pluralidade de ritmos e formas musicais que remonta à Idade Média na Europa. Os cantadores são nossos menestréis e trovadores. A voz metálica que rasga como um aboio em meio à seca, como na interpretação de Raimundo Fagner, revela uma sonoridade árabe, que talvez nos tenha chegado através da Península Ibérica por ocasião das colonizações da América do Sul. O xaxado, o xote, o baião, o coco, o caboclinho, o boi, o maracatu, entre outros ritmos e estilos, continuam sendo reverenciados pelos compositores cearenses em suas obras. O encontro dessas sonoridades regionais com o roque e outros estilos internacionais acrescenta ainda mais possibilidades que, por vezes, são captadas pela criatividade artística.
O disco “Palavras no Varal” (gravado em 2001), do compositor, músico e intérprete Raimundo Serrão de Castro Jr., que assina artisticamente apenas como Serrão, traz uma boa amostragem de uma mistura de ritmos. Maracatu, blues, rap, balada, baião estão inseridos na mesma obra, desprovidos de preconceitos e mantendo uma coerência estética.

— Ceará X eixo Rio/São Paulo

Acontece que o principal centro gerador de notícias dos meios de comunicação encontra-se no eixo Rio/São Paulo, o que cria uma dependência nas demais regiões do país. No Ceará, já existem bons estúdios de gravação e fábrica de discos, proporcionando uma maior produção local, o que se traduz em diminuição da referida dependência. Não obstante, essa produção não chega ao conhecimento de uma parte considerável de professores e estudantes de música.
À guisa de exemplo, a cantora e compositora Kátia Freitas - mesmo tendo gravado a maior parte e reproduzido os seus dois primeiros discos aqui no Ceará, que trazem respectivamente os títulos Kátia Freitas e Próximo, e tendo conquistado um certo reconhecimento, ainda que restrito a certos iniciados no estilo musical da artista - precisou “descer” para São Paulo em busca de uma aceitação mais ampla que, de acordo com as regras ditadas pelos veículos de massa, necessita do aval das emissoras de rádio e televisão da região Sudeste. Só assim, sendo conhecida no Sudeste, poderá ser reconhecida nas demais regiões do país e até mesmo na sua terra natal. Essa atitude de nossa ilustre artista revela a desvalorização local. Caso a música não chegue à nossa “aldeia cearense” via mídia nacional o artista estará fadado ao anonimato.

— A riqueza musical do Ceará

A música cearense, ao conseguir contornar esses percalços, sempre presenteou a cultura brasileira com importantíssimas contribuições. O cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920), abolicionista, parceiro de Machado de Assis, que compõe em 1903 o Hino Oficial do Estado do Ceará em parceria com Thomaz Lopes, é um dos mais importantes nacionalistas que inspirou Villa-Lobos; Humberto Teixeira, da cidade de Iguatu, cunhado de outro grande ilustre, o Lauro Maia, que o apresentou a Luiz Gonzaga, donde nasceu uma das mais representativas obras do Nordeste; Lauro Maia, compositor, músico, arranjador, por sua vez, lançou o balanceio, um ritmo que se aproxima a um baião; na mesma época, década de 40; o violonista Aleardo Freitas, o pianista Luiz Assumpção, os maestros Mozart Brandão e Cleóbolo Maia também marcaram época na Ceará Rádio Clube e Rádio Iracema. Esses são apenas alguns exemplos que ilustram a grandiosidade da música cearense.

— O Pessoal do Ceará

O Pessoal do Ceará, movimento que nos interessa em nossos estudos, nasceu do encontro de vários estudantes, artistas e intelectuais que se reuniam regularmente no Diretório Acadêmico do Curso de Arquitetura da Universidade Federal do Ceará em meados dos anos 60, como nos conta Mary Pimentel Aires: “O foco de irradiação da efervescência cultural em Fortaleza era a Universidade, centro aglutinador de artistas e intelectuais que mostravam uma grande disposição em influenciar, intervir e participar efetivamente do debate sobre as emergentes questões nacionais”. Outro importante ponto de encontro era o Bar do Anísio, que se situava na Av. Beira Mar, até hoje muito lembrado e citado pelos integrantes do movimento artístico aqui em questão.
Dessa movimentação artística, algum tempo depois, encontraram lugar na mídia, músicos, compositores e intérpretes como Raimundo Fagner, Ednardo e Belchior. Esses nomes, devido à projeção conquistada no país, deveriam constar nos currículos escolares. Porém, existem muitos outros artistas e intelectuais da música, das artes plásticas, do teatro, da literatura, que desempenharam papéis de fundamental importância para a formação da(s) identidade(s) cearense(s) daquela época.

— O marco: a gravação do LP

Mil novecentos e setenta e três foi o ano de lançamento do LP (long-play) Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem, que recebeu como sub-título Pessoal do Ceará.

Reunindo canções como Beira-Mar e Terral, de Ednardo, Cavalo Ferro, de Fagner e Ricardo Bezerra, o disco Pessoal do Ceará – Meu Corpo Minha Embalagem Todo Gasto na Viagem, produzido por Walter Silva para a gravadora Continental, em 1972, constituiu-se como marco na incursão dos novos compositores cearenses no mercado fonográfico. (Aires, 2002:202).

Maracatu, rock-country, toada, balada, sonoridades psicodélicas, sertanejas, urbanas e praianas encontram-se harmonicamente lado a lado no citado disco. As poesias descrevem diversos cenários: do litoral ao sertão, passando pela região urbana. Encontram-se o amor, a filosofia, a crítica aos meios de comunicação e à política. A arte cearense conquista o sul maravilha nas vozes de Ednardo, Rodger de Rogério e Tetty.
Ednardo tinha sido aluno de Química da UFC. Rodger de Rogério foi professor de Física da mesma universidade e encontrava-se em São Paulo na qualidade de professor da USP. Tetty, além de uma afinação vocal privilegiada também se dedicou à maternidade de dois filhos com o Rodger; a Daniela Oliveira de Rogério e eu, Pedro Rogério. A casa em que morávamos acolhia boa parte dos cearenses que pela terra da garoa passavam. Antônio Carlos Belchior que primeiro chegou em São Paulo já conhecera Elis Regina que gravou em 1972 Mucuripe - parceria de Belchior com Fagner - e em um dos momentos mais brilhantes de sua extraordinária carreira, em 1976, gravaria, no disco Falso Brilhante, duas músicas do cearense de Coreaú, cidade próxima a Sobral, Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, ambas, letra e música de Belchior.
Todo esse legado é de vital importância para a educação musical, e é exatamente por isso que deve ser uma das áreas do conhecimento a estar atenta para não se deixar engolir por uma cultura imposta pelas indústrias fonográficas e suas redes de atuação que se apresentam principalmente pelos meios de comunicação. Cabem então os primeiros questionamentos: têm as escolas os mesmos objetivos dos veículos de comunicação? Por que as escolas aceitam a cultura musical gerada pela televisão e pelas rádios como sendo “a cultura”?

3. PROBLEMATIZAÇÃO

Na qualidade de professor de música, freqüentemente, encontro obstáculos entre uma proposta de repertório musical com vistas à ampliação dos conhecimentos dos alunos e as expectativas dos mesmos. A dificuldade encontrada dá-se quase sempre pelo fato do interesse dos adolescentes estar focado nas “músicas da moda”, ou seja, as que são veiculadas pelas rádios comerciais e pela televisão.
Cabe relatar uma experiência que ilustra bem o fato: em uma aula de música, na busca de diversificar as opções do repertório, propusemos a música “Bola de meia, bola de gude” da autoria de Milton Nascimento e Fernando Brant. Para diminuir um eventual estranhamento, introduzimos “elementos da moda”. O baterista se encarregou do “Rock and Roll” e algumas partes da letra deveriam ser interpretadas no estilo rap, ou seja, mais declamada do que cantada. Porém, o vocalista relatou não perceber nenhuma identificação com a música, de forma que não se sentia disposto a interpretá-la, afirmando até mesmo que, caso cantasse, isso iria de encontro à sua natureza, já que o cantar é um ato extremamente pessoal. Mesmo diante de tal reação ainda tentei convencê-lo com alguns argumentos acerca das idéias poéticas contidas na letra e das possibilidades de experimentações musicais, mas foi em vão. Algumas semanas depois estreou a novela “Coração de Estudante” na Rede Globo de Televisão e um dos hits do programa era justamente a música que nós insistíramos para ser inserida no repertório do grupo. Eis que o mesmo vocalista volta atrás no seu julgamento a respeito da música e diz ter se convencido que a mesma era realmente muito interessante. Por fim, após o aval da televisão junto ao aluno, a música passou a figurar no repertório do grupo.
Observação importante é que existe uma ditadura cultural travestida em símbolo de contemporaneidade, que massifica o gosto, e quem não se enquadra nos padrões ditados se vê excluído. A cultura de massas é apresentada como única opção para a maior parte dos estudantes.


4. DELIMITAÇÃO DO PROBLEMA

A música cearense deve ser particularmente importante para os alunos cearenses. Embora essa afirmação pareça óbvia, não é o que indicam as práticas no âmbito do ensino musical do estado do Ceará. Alguns podem chamar de bairrismo e outros de autoconhecimento. Nós nos filiamos à segunda opção.
Todo o legado musical, no caso para nosso estudo, dos artistas da década de setenta, é de extrema relevância para o entendimento da música cearense. A importância, para um aluno da disciplina de música do estado do Ceará, de se entender a história dos compositores e artistas da sua terra é condição sine qua non para uma formação que proporcione um olhar crítico sobre seus próprios valores. Entender verdadeiramente o presente requer o conhecimento das iniciativas passadas. Seja para concordar ou discordar, dar continuidade ou romper, seja como for; o que somos hoje e o que pretendemos ser amanhã está inevitavelmente ligado ao que fomos ontem.
Certamente ao estudarmos as obras do Pessoal do Ceará encontraremos uma gama de influências nacionais e internacionais que proporcionará uma visão mais crítica a respeito de nossas formações.
Os estudantes nos anos oitenta parecem ter ficado órfãos de referenciais estéticos da própria região, o que nos leva a supor que tenha sido criado um terreno extremamente fértil para a cultura de massas. Dessa forma a pergunta que se impõe é: Qual a relação dos currículos das escolas estaduais do ensino médio do Ceará nos anos 80 com a produção musical local dos anos 70?

5. OBJETIVOS DA PESQUISA

— Geral

A pesquisa se propõe a investigar a relação do currículo cearense na década de oitenta com os referenciais estéticos da música do Ceará na década de setenta com o objetivo de analisar a formação dos alunos no que diz respeito aos conceitos estéticos e seus referenciais. Buscaremos compreender também as mutações do perfil do aluno, a partir do processo de expansão das culturas de massas em contraponto aos referenciais estéticos.


— Específicos

1. Propor uma visão mais aprofundada sobre os referencias estéticos na formação dos alunos do ensino médio no Ceará;
2. Resgatar, para o âmbito da reflexão curricular, os referenciais estéticos da década de setenta;
3. Compreender a natureza do conhecimento artístico e seu espaço nas escolas públicas estaduais.
4. Analisar a relação entre arte e ciência; suas semelhanças e diferenças;
5. Contribuir para a reflexão do ensino de artes, oferecendo subsídios para um ensino de música mais sintonizado com seu tempo e espaço;
6. Verificar a influência das culturas de massas nos currículos escolares;
7. Compreender o papel do professor de artes nas escolas identificando seus saberes e competências, analisando, ainda, as relações de poderes entre as disciplinas curriculares;




6. QUADRO TEÓRICO
“Arte e ciência são encontros e
reencontros com a realidade.”
(Matos, 2001)

— Artes, identidades e formação do imaginário: uma tarefa da educação:

Harmonia, melodia e ritmo formam os elementos fundamentais da música e em cada um deles podemos encontrar um universo de informações estéticas. Mas isso é só o alicerce para a análise de uma peça ou de um repertório musical. Somem-se a esses elementos as várias possibilidades de utilização de instrumentos e as opções interpretativas oferecidas por cada instrumento de acordo com o desenvolvimento da técnica e da sensibilidade do executante.
O estudo musical desses elementos nas obras do movimento Pessoal do Ceará pode revelar a formação do pensamento das pessoas que sofreram influências das obras estudadas ou ainda verificar o que aconteceu com a formação daqueles que foram privados desse conhecimento. Seguindo o pensamento expresso no PCN “O ser humano que não conhece arte tem uma experiência de aprendizagem limitada, escapa-lhe a dimensão do sonho, da força comunicativa dos objetos à sua volta, da sonoridade instigante da poesia, das criações musicais, das cores e formas, dos gestos e luzes que buscam o sentido da vida” (PCN: arte/ MEC, página 21) Não podemos nada afirmar antes de um estudo mais profundo, mas podemos antecipar que um povo que não conhece a produção artística produzida na sua terra não é capaz de se autoconhecer.

As diferentes formas de percepção da realidade se configuram nas criações artísticas que o homem do ocidente elaborou ao longo de sua história. Nelas podemos perceber os diferentes conceitos de tempo e de pensamento que caracterizam cada uma das épocas do mundo ocidental.(Matos, 2001:81)

A representação do repertório artístico no imaginário de um povo em uma determinada época revela toda uma estrutura social. Estudá-la à luz dos conceitos de currículo, cultura e escola é acreditar que no âmbito educacional podemos identificar e propor soluções para uma sociedade ciente de suas problemáticas e de suas possibilidades de superação.

Esse processo de revisão do imaginário, de adensamento de um novo lençol antropológico, terá seu lugar privilegiado na educação, universitária ou não. (Coelho, 2001:212).

Entender como nossa população se reconhece e percebe quais valores são colocados em evidência para representar o Brasil são tarefas inerentes à educação. Não são de responsabilidade única e exclusiva da educação, mas certamente revelam o quão ela está umbilicalmente relacionada com uma educação comprometida com seu povo e seu tempo.

Não uma educação qualquer, nem uma educação baixamente finalista, por certo. Mas uma educação que trabalhe sobre as estruturas do processo de representação que o brasileiro está fazendo de si mesmo, através de sua cultura, e sobre a representação, nada entusiasmante, que a cultura em sentido amplo, nacional ou não, faz do ser humano nesse momento. (Coelho, 2001:212).

Os meios de comunicação deveriam estar sempre a serviço do bem coletivo. Ocorre que na maior parte dos casos, especialmente quando se trata da cultura, o efeito tem sido negativo. Valores culturais populares e eruditos são trocados por uma massificação midiática que impede a formação de um senso crítico. Quem seleciona o que é, ou não, importante para a sociedade são os meios de comunicação, ocupando um espaço e uma função que deveriam caber à educação, promotora essencial de discussões acerca da formação da identidade cultural do seu povo.

Os tempos não são mais da crença ilimitada que o Iluminismo manifestava na educação. No entanto, a educação ainda é um dos poucos recursos contra o esfacelamento social. (Coelho, 2001:212).

A atenção com os valores que representam as identidades culturais de um povo é de extrema relevância e a escola é um dos ambientes mais adequados para clarificar essa importância com vistas à formação de princípios que se enraizarão no caráter e na personalidade de um sujeito que venha a ser autônomo, capaz de se posicionar de maneira consciente frente aos desafios impostos pela dinâmica social.

É impossível, na sociedade atual, com o progresso dos conhecimentos científicos e técnicos, e com o peso cada vez maior de outras influências educativas (mormente os meios de comunicação de massa), a participação efetiva dos indivíduos e grupos nas decisões que permeiam a sociedade sem a educação intencional e sistematizada provida pela educação escolar. (Libâneo, 1990:18).

A partir do regime militar a educação parece ter abandonado o interesse pelos valores simbólicos que poderiam despertar uma percepção mais elaborada e refinada da cultura brasileira. O período do regime autoritário tinha como uma de suas bandeiras o nacionalismo. Logo, a contracultura e seus seguidores passaram a questionar aquele nacionalismo. Tudo que estivesse ligado ao regime militar era de pronto rejeitado sem uma observação mais cuidadosa. A ausência de atenção com os símbolos culturais representativos do Brasil – entre eles a música - pode estar relacionada com essa atitude antimilitar. Visto que o poder instituído utilizava-se de um discurso racional, era natural, à primeira vista, que os opositores se apropriassem de um discurso irracional.

Talvez a política educacional do regime autoritário seja o mais importante desses fatores internos[1]. Durante 20 anos ela extirpou metodicamente dos currículos tudo o que tivesse a ver com idéias gerais e com valores humanísticos. Nesse sentido, o que está na origem da “contracultura” é a “incultura” - uma incultura engendrada politicamente. (Rouanet, 1987:125).

A identidade cultural nacional e as identidades regionais – lembrando da diversidade cultural de um país de dimensões continentais, como o Brasil - se esmaecem progressivamente ao longo das décadas de 80. As manifestações culturais que representam a cultura popular ou erudita, nacional ou regional são marginalizadas. O novo traço cultural delineado naquele período é ser do contra; contra qualquer coisa que pudesse ter a menor identificação com os militares. Essa nova postura abre um terreno extremamente fértil para as culturas de massas. Inicialmente apareceram as bandas de roque, denunciando injustiças sociais, denúncias essas feitas por jovens de classe média que tinham acesso a uma boa educação e na verdade não eram, diretamente, vítimas daquilo que eles denunciavam. Porém a pior parte desse advento vem com o que os próprios empresários do ramo cultural intitularam de axé music, seguido pela música sertaneja, não aquela música do Pena Branca e Xavantinho, verdadeiros representantes da cultura de seu povo, mas aquela que, de tão entranhada pela cultura de massas, mais sonha em ser música country, representando muito mais valores culturais americanos do que brasileiros. Até as novas formações de bandas de forró no Nordeste entraram na ciranda mercadológica. Os artistas mais conhecidos pelo povo não são mais os que representam a cultura de vanguarda, que buscam ampliar a visão que se tem do mundo, e sim os que conquistam a vitória no mercado fonográfico.Como conseqüência hoje podemos identificar um esfacelamento da identidade cultural.
Os currículos podem revelar todo esse processo de formação - ou de não formação - das representações simbólicas. Os valores estéticos eleitos pela educação que foram e são incorporados no imaginário do povo cearense poderão revelar as causas de algumas das problemáticas educacionais. Assim como os valores estéticos que foram abandonados certamente revelarão a perda de uma identidade nacional ou regional.

Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade. Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade. (Silva, 2003:16).

Os estudos curriculares podem revelar a profundidade das questões aqui propostas. Podem ainda indicar quais os interesses daqueles que decidem quais conhecimentos têm validade para figurar nos currículos escolares.

Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre múltiplas possibilidades, uma identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder. (Silva, 2003:16).

Os estudos relativos ao que foi o movimento Pessoal do Ceará têm implicações no que somos hoje, do ponto de vista de identidade cultural. A ausência de uma preocupação, por parte daqueles que decidem os conhecimentos que são válidos, relacionada aos valores estéticos abre espaço para a cultura de massas, e essa passa a ditar valores que são de interesse dos mercados culturais.

— A formação do professor de artes

Os profissionais da educação devem – ou deveriam - saber de suas responsabilidades no que diz respeito aos conteúdos e sua relevância nos currículos. Porém existe um despreparo histórico que é inclusive relatado pelo PCN/arte: “Em 1971, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a arte é incluída no currículo escolar com o título de Educação Artística, mas é considerada ‘atividade educativa’ e não disciplina. (...) As próprias faculdades de Educação Artística, criadas especialmente para cobrir o mercado aberto pela lei, não estavam instrumentadas para a formação mais sólida do professor (...). Os professores passam a atuar em todas as áreas artísticas, independentemente de sua formação e habilitação. Conhecer mais profundamente cada uma das modalidades artísticas, as articulações entre elas e conhecer artistas, objetos artísticos e suas histórias não faziam parte de decisões curriculares que regiam a prática educativa em Arte nessa época”.
Não é difícil perceber que os alunos universitários, futuros professores, que foram regidos pela lei acima citada – LDB de 1971 – careceram de uma melhor formação. Na prática educativa escolar esses professores tinham pouca fundamentação para defender a importância da sua área de trabalho e melhores condições de ensino.

Sem uma consciência clara de sua função e sem uma fundamentação consistente de arte como área de conhecimento com conteúdos específicos, os professores não conseguem formular um quadro de referências conceituais e metodológicas para alicerçar sua ação pedagógica (...)”. (PCN/arte, 2001:32).

A ação pedagógica do professor de artes é também uma ação política que deve ser enfatizada na sua formação. Os valores atribuídos, através de uma construção social, às diversas disciplinas curriculares e extracurriculares que formam uma relação de poder, a rede de influências educacionais na formação subjetiva dos alunos preenchendo o imaginário da população com símbolos que, em geral, estão a serviço do mercado, revela a necessidade do professor de artes estar consciente do seu papel político.

O que devemos ter em mente é que uma educação voltada para os interesses majoritários da sociedade efetivamente se defronta com limites impostos pelas relações de poder no seio da sociedade. Por isso mesmo, o reconhecimento do papel político do trabalho docente implica a luta pela modificação dessas relações de poder[2]. (Libâneo, 1990:21).

Acreditamos que também será possível, através dessa pesquisa, buscar respostas às perguntas feitas pelos próprios professores de artes a respeito da cientificidade dos conteúdos, da formação do professor de artes, do seu papel na escola e na sala de aula, da natureza mesmo do conhecimento artístico destacando a importância de podermos refletir sobre como se aprende e se ensina arte.
Como não é possível a um só tempo contemplar todos os momentos históricos da educação e das manifestações artísticas temos que nos ater a um período. O estudo da década de setenta, por se caracterizar pela efervescência cultural, e seus desdobramentos na década de oitenta no âmbito curricular é certamente um bom caminho para clarificar as questões ora propostas.

— A estética do Ceará e do mundo

A produção artística do movimento Pessoal do Ceará tem uma importância central no que diz respeito à identidade cultural cearense da década de setenta e com ressonâncias que alcançam os dias atuais.
As opções estéticas dos artistas e intelectuais ligados ao movimento Pessoal do Ceará não se deram de forma isolada, certamente encontraremos suas raízes na efervescência cultural da década de sessenta. Os questionamentos levantados não eram exclusividades dos artistas locais e sim um traço cultural comum a diversos setores da sociedade em diversos países.

Como sabemos, a década de 60 foi uma década de grandes agitações e transformações. Os movimentos de independência das antigas colônias européias; os protestos estudantis na França e em vários outros países; a continuação do movimento dos direitos civis nos Estados Unidos; os protestos contra a guerra do Vietnã; os movimentos de contracultura; o movimento feminista; a liberação sexual; as lutas contra a ditadura militar no Brasil: são apenas alguns dos importantes movimentos sociais e culturais que caracterizaram os anos 60. Não por coincidência foi também nessa década que surgiram livros, ensaios, teorizações que colocavam em xeque o pensamento e a estrutura educacional tradicionais.
(Silva, 2003:29).

O lugar da educação musical nos currículos das escolas públicas é vital no entendimento da formação subjetiva dos alunos do ensino estadual no município de Fortaleza. O caso - ou descaso - em relação ao movimento Pessoal do Ceará, ao que ele representou, suas influências e conseqüências estéticas, certamente nos levará à compreensão dos problemas de formação cultural nas escolas e suas implicações na sociedade.



7. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS DE INVESTIGAÇÃO

“Afirmamos que todo ensino deve estar
baseado na alegria da descoberta...”

(Matos, 2001)

— Referencial metodológico da investigação

O estudo do saber produzido no Ceará, mais especificamente no ambiente universitário, em um contexto político, ainda no período do governo militar, com conseqüências em todo o território nacional, mas que tem desdobramentos culturais próprios da nossa região e, portanto com características próprias revela que o trabalho aqui proposto é marcadamente de cunho etnográfico e de caráter qualitativo, como é descrito abaixo:

“(...) uma metodologia de investigação que enfatiza a descrição, a indução, a teoria fundamentada e o estudo das percepções pessoais. Designamos esta abordagem por ‘Investigação Qualitativa’” (Bogdan & Biklen, 1994).

Os aspectos culturais desse trabalho se fundamentam em um modelo de pesquisa qualitativa, tendo em vista que este contempla o cotidiano, as conversas, o processo de criação artística, a construção de novas idéias e inovadoras propostas de expressão musical. E como falam Bogdan e Biklen, a pesquisa qualitativa tem como objetivo “investigar os fenômenos em toda a sua complexidade e em seu contexto natural” (1994:16).

8. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

AIRES, Mary Pimentel. O Pessoal do Ceará; um movimento geracional em busca de sua identidade cultural e musical. In: CHAVES, Gilmar. Ceará de Corpo e Alma. Rio de Janeiro-RJ. Relume Dumará, 2002.
APPLE, M. Educação e Poder.Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
BOGDAN, Roberto C. & BIKLEN, Sari Knopp. Investigação Qualitativa em Educação – uma introdução à teoria e aos métodos. Portugal: Porto Editora, 1994.
COELHO, José Teixeira. Moderno pós moderno. 4ª Edição. São Paulo-SP: Iluminuras, 2001.
DESLANDES, Suely Ferreira. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 1994.
LIBÂNEO, José Carlos. Didática. Cortez Editora, 1990.
MATOS, Elvis de Azevedo. Musicalização e Musicalidade. In: COLARES, Edite. Ensino de Arte e Educação. Fortaleza-CE: Brasil Tropical, 2001.
_____ Arte e Ciência – A função da Arte na Construção do Conhecimento. In: COLARES, Edite. Ensino de Arte e Educação. Fortaleza-CE: Brasil Tropical, 2001.
_____ Viagem através da música ocidental In: COLARES, Edite. Ensino de Arte e Educação. Fortaleza-CE: Brasil Tropical, 2001.
PCN – Parâmetros Curriculares Nacionais:arte / Ministério da Educação. Secretaria da Educação Fundamental. – 3. Ed – Brasília: A Secretaria, 2001.
ROUANET, Sérgio Paulo. As razões do iluminismo. São Paulo-SP: Cia das Letras, 1987.
SILVA, Tomas Tadeu da. Documentos da Identidade; uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte-MG: Autêntica Editora, 2003.

[1] Rouanet refere-se a fatores que fizeram nascer um novo irracionalismo no Brasil.
[2] Libâneo reforça, ainda, que essas relações de poder têm suas origens nas lutas de classes, com interesses, entre trabalhadores e patrões, diametralmente opostos. Também lembra que essas relações não são estáticas, antes, se modificam dentro da dinâmica social.
[3] Utilizo aspas na expressão “arte e educação” por ser um conceito ainda em formação. Justamente pela falta de maior clareza do papel do profissional de artes no âmbito educacional - ou do artista que ensina ou do professor que utiliza a linguagem artística em sala de aula. Alguns autores preferem grafar com o hífen: “arte-educação”.

1 comment:

Ana Léa said...

Agora que achei. Vou ler! abraço